2007/03/25

Imaginário do Artista - 6 -Veneza















Este texto falará de Veneza, mas também de quão difícil é a escrita sobre cidades. Ao dizer o nome de uma cidade sou assaltado por um rol de imagens (muitas pitorescas e de bilhete-postal). Também por outros lugares-comuns. Sei que o que escrevi dificilmente acrescentará alguma coisa à ideia de cidade que os leitores têm; à cidade propriamente dita nada acrescentará seguramente. Descrever uma cidade como Veneza, ou qualquer outra que seja destino de milhares ou milhões de turistas anualmente é, nos dias que correm e com a proliferação de imagens que dá resposta a essa voracidade, tarefa mais do que ingrata, absurda. Mas Veneza é, juntamente com uma meia dúzia de outras cidades, peça importante do meu imaginário, influenciou bastante a minha percepção do mundo (alterou-a mesmo). Não virei as costas às dificuldades da escrita e o texto aqui se apresenta, de viés, contornando as imagens de bilhete-postal que se me impuseram mas afirmando, no entanto, que o lugar-comum constitui cerca de noventa por cento do que me faz gostar de Veneza. Não adianta nada repetir o que foi já dito ou mostrar o que foi já mostrado, e procurei aflorar, dentro do possível, os restantes dez por cento. Para dar, em algumas passagens, o tom ao texto, vali-me da poesia, pois de outra forma não poderia dizer o que para dizer tenho.

É genuíno o meu gosto por Veneza e se pudesse recuar no tempo até ao momento em que me foi dada a ideia da existência de uma cidade com o nome de Veneza, diria que logo fiquei a gostar dela. «Existe uma cidade chamada Veneza» e de imediato emergem destas sílabas ruas imaginárias de antiguidade incomensurável libertando cheiros, cores e sons desconhecidos e longínquos. Liberta-se um sereno mistério da palavra Veneza – V e Z sobressaem numa palavra de vogais fechadas, transmitindo uma noção de exotismo sofisticado que se deve talvez ao facto de V, X e Z serem as últimas consoantes do alfabeto e as últimas que conhecemos quando aprendemos a ler. Saber que existe uma cidade chamada Veneza (onde há palácios que surgem em calmas pracetas às quais se chega por vielas silenciosas, estreitas e labirínticas e por pequenas pontes sobre canais de onde emergem as construções) sem nunca lá ir, seria sempre experimentar o sonho de um mundo encantado, desconhecido e vago, próximo do experimentado pelos leitores do livro que Marco Pólo ditou a Rustichello de Pisa no cárcere de Génova em 1298. Ou mais semelhante ainda às cidades fantásticas que Italo Calvino colocou na boca do mesmo Marco Pólo residente da corte de Cublai Cã, no livro “As Cidades Invisíveis”.
Estranha nisto de gostar de coisas (neste caso de uma cidade) é a ideia de colisão entre características dos objectos de que gostamos com algo que em nós existe. Deverá ocorrer uma colisão desse género, caso contrário o gosto não seria mais que um aleatório capricho que pouco ou nada teria a ver com o objecto do gosto, mas antes e apenas com a psicologia daquele que gosta (o gosto viria suprimir uma necessidade psicológica no prazer da ideia de gostar de alguma coisa, fosse que coisa fosse). Se o gosto existe não apenas porque necessitamos de gostar de coisas, mas porque há uma colisão entre elementos do objecto do gosto e elementos preexistentes naquele que gosta, então existe a possibilidade de aprofundar as causas desse impacto inicial, dessa colisão, e descrever o que o leva a gostar daquela coisa. Uma vez identificados os elementos em “colisão”, ultrapassamos o “primarismo” do gosto e iniciamos a experiência estética, mais rica, mais complexa e também muito mais gratificante.
A descrição do todo que constitui a cidade é tarefa aceite à partida como impossível dada a complexidade das relações entre os elementos que a constituem. Neste aspecto a cidade difere da obra de arte: desta dizemos que aspira a ser compreendida na sua totalidade (embora estejamos conscientes dessa impossibilidade), acreditando que os seus elementos são finitos; da cidade dizemos que tem uma infinidade de elementos e acreditamos de igual modo nela. Da obra de arte esperamos, no máximo, “meia dúzia” de autores; da cidade esperamos um rol interminável de pequenas e grandes contribuições, pois todo e qualquer dos seus habitantes partilha, por assim dizer, dela a autoria. Em vez de autores, talvez possamos dizer mais correctamente que haverá, ao longo dos tempos, actores da cidade. O “jogo” estético que a obra de arte nos propõe residirá talvez na tentativa de descodificar a sua totalidade como obra e de imaginarmos a possibilidade de atingirmos esse objectivo. Da cidade sabemos que, para além de infinita, a sua condição é ser mutável e que o seu “ser-cidade” se definirá, talvez, através de um carácter próprio que persiste apesar da constante mudança. Gostar de uma cidade é, por isso, gostar da ideia que fazemos dela, ou seja, gostar do seu carácter. Transcender o gosto que por ela nutrimos e mergulhar na experiência estética torna-se deste modo possível, porque nos debruçamos não sobre a totalidade do objecto (sabemos que a realidade da cidade se prolonga indefinidamente para além do nosso tempo de vida e que a enormidade dos elementos que a constituem é impossível de apreender por um único ser humano) mas antes sobre o esquema mental que estrutura uma percepção ultra complexa.
Das coisas de Veneza que comigo colidiram, ainda antes de lá ter estado, muito poderia dizer falando por muito tempo – falaria das Venezas que me foram trazidas pela literatura, música, pintura, cinema, fotografia ou banda-desenhada, por artistas como Thomas Mann, Vivaldi, Canaletto, Turner, Visconti, Hugo Pratt ou Carlo Scarpa. Nos mundos da arte como no mundo “real” Veneza é inesgotável. Mas já lá estive e digo por isso de Veneza que é a cidade prodigiosa, ultra adjectivada, onde tão bem viveria pois viveria num permanente arrebatamento poético. Depois de lá ter estado por diversas ocasiões afirmo que o que colide comigo é o facto de Veneza ser uma cidade onírica. O absurdo e a irrealidade que caracterizam os sonhos são realidade quando vagueamos pelas calle, salizzada, fondamenta, ruga, ramo, campo, sottoportego e rio terra de Veneza. Há aspectos curiosíssimos sobre a organização verbal dos espaços de Veneza, que são de uma poética tocante. Há apenas uma piazza, S. Marco. As restantes são chamadas de campo. Fondamenta é uma rua ao longo de um canal. Ramo é uma rua lateral que liga a duas ruas mais largas e, sendo estas canais, o ramo torna-se um beco. Sottoportego é uma viela com passagem em túnel por baixo de um edifício. Rio terra é um antigo canal que foi coberto de terra. Aos palácios dá-se a denominação de Ca’, que é a abreviatura veneziana de casa (salvo algumas excepções como o Palazzo Ducale). A maravilha extrema que Veneza é, e que até na classificação dos espaços se manifesta, emergiu do lodo da Laguna e nele lentamente imerge. O líquido espesso e escuro que, em vez de fluir, pesa sobre os canais de Veneza, esconde um surdo abismo que acompanha o transeunte nas deambulações pelas suas vielas labirínticas. Os hipnóticos reflexos da luz que no líquido incide insinuam-no ao olhar, e este por vezes bloqueia perante aquele apelo turvo. Líquido fétido, mórbido, metáfora terrível das profundezas submersas. Na sua presença intuímos o nosso próprio fim: pensamos que um dia haveremos de morrer e, tal como Veneza, certamente morreremos.
.........................................................................................................................
Fotografia: Nuno de Matos Duarte, Veneza, Novembro de 1999

Sem comentários: