2007/03/16

Imaginário do Artista - 1 - Mona Lisa




















Leonardo Da Vinci
“Mona Lisa”
(ou “La Gioconda”)
Óleo s/ painel de madeira
77x53cm
Museu do Louvre, Paris

Curiosamente, aquela que é considerada a pintura mais famosa do mundo é também a primeira que me lembro de ver e a que me fez tomar consciência da existência da arte, embora até hoje nunca a tenha visto senão em reproduções. Ainda não frequentava o ensino primário quando me familiarizei com aquela imagem. Havia uma reprodução da Mona Lisa emoldurada e pendurada na parede da salinha da casa da minha vizinha do 2.º andar do prédio onde morava e com cujos filhos ia brincar regularmente. O quadro estava pendurado um pouco alto numa parede que recebia sol de nascente e eu via aquela estranha senhora representada no quadro a olhar-me de cima. Não era a expressão indeterminada, o seu meio sorriso, a captar a atenção da criança que eu era, mas sim as feições, penteado e roupas (que me pareciam pouco plausíveis) e as cores estranhas do quadro, habituado que estava a ver as pessoas representadas apenas (e mais “realisticamente”) em fotografias. Mais tarde, lembro-me do fascínio que me causou o padrão das fissuras da tinta deste quadro numa fotografia muito ampliada reproduzida num livro do meu pai. Pensava eu, na altura, que aquele efeito de “verniz estalado” tinha sido opção do pintor e que correspondia a uma fascinante e inimitável técnica de pintar. Que habilidade, paciência e destreza de mãos para fazer aquilo! Nesse livro fiquei também a saber que o quadro tinha sido pintado por Leonardo Da Vinci, um génio da renascença italiana que, para além de pintor, também tinha sido arquitecto, urbanista, engenheiro, escultor e cientista. Fiquei a saber que havia arte e artistas.
Passadas quase três décadas, vi já milhares de reproduções e variações artísticas e publicitárias da Mona Lisa, em livros, revistas, jornais, na televisão, no cinema e na internet. É, apesar disso, uma obra que me continua a intrigar, embora não pelos mesmos motivos que intrigaram a criança que através dela descobriu a existência da arte e dos artistas. O título do quadro nasceu certamente dos escritos de Vasari que referem que Leonardo terá elaborado para Francesco Del Giocondo o retrato de Mona (diminutivo de Madonna) Lisa, sua esposa, deixando-o incompleto após nele ter trabalhado quatro anos (provavelmente entre 1503 e 1507). Daí também a origem do nome que os italianos carinhosamente lhe dão, “La Gioconda”. O quadro consiste na representação de uma figura feminina, pintada posando para o pintor, com paisagem em fundo. A paisagem está mais baixa que a figura que se encontra numa varanda ou terraço sobrelevado. O quadro foi cortado dos dois lados – originalmente havia duas colunas a ladear a Madonna Lisa. A sua pose é, aparentemente, simples mas a um olhar mais atento percebemos que o pintor não usou a simetria, preferindo antes estabelecer um jogo de subtis torções. A composição é de princípio triangular, definindo o antebraço esquerdo a base do quadro. A mão direita pousa sobre a mão esquerda e as pregas das vestes iluminadas nos antebraços repetem o serpentear fluido dos cursos de água visíveis na paisagem em fundo e para os quais a diagonal do antebraço direito encaminha o olhar. Também o que parece ser um véu enrolado sobre o ombro esquerdo da figura tem continuidade nas formas da paisagem que, por sua vez, não possui carácter definitivo, estando à mercê dos cursos de água que a moldarão continuamente com o seu movimento caótico. A obra é, por isso, uma evocação do eterno fluir dos elementos que compõem o universo, posto em evidência simbolicamente em outras duas características fundamentais do quadro. A primeira, de carácter técnico, consiste na transição subtil das superfícies representadas na pintura, o célebre sfumato com o qual as cores veladas se sucedem, desvanecendo umas nas outras. A segunda, de profundidade psicológica, reside no suposto mistério que o sorriso da Mona Lisa oculta. Numa interpretação livre e subjectiva, poderia afirmar-se que o seu meio sorriso denuncia a partilha de um qualquer segredo com o pintor. A meu ver, aquela expressão vaga evidencia, acima de tudo, o fluir do tempo numa face cuja expressão é o já quase sorriso ou o prestes a deixar de sorrir, o lapso de tempo aprisionado através das tintas que terá dado aos contemporâneos de Leonardo, mais até do que a nós mesmos, a impressão de presenciarem, não o quadro, mas o modelo vivo.

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