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2009/01/18

A Improvisação Pura como Possibilidade Metodológica e Estética


Nunca será supérfluo afirmar que os

caminhos da arte são os trilhos do

homem inquieto


1.ª Parte

O espectador da obra de arte improvisada deve ser prudente na identificação de falhas ou erros que, noutro contexto, revelariam uma evidente fragilidade formal. O mesmo se aconselha ao próprio artista improvisador. Os acontecimentos inusitados que contrariam a lógica construtiva que o espectador credita como correcta por se cumprir na sua “expectabilidade”, não devem, nem podem, ser considerados erros. Esse tipo de acontecimentos é antes «acidente» porque a persecução da competência técnica e interpretativa, como garantia da integridade da conformação da ideia de obra, não é adequada à obra de arte improvisada. A obra de arte improvisada só é relevante na medida em que tende para uma improvisação pura (ou a indicia). Da improvisação artística relevante nunca faz parte o erro de interpretação porque este, para ocorrer, teria de se reportar a uma ideia para interpretar. A acção que constitui a improvisação não se faz em função de uma ideia da qual o gesto vem ser representação, mas sim em função do estabelecer de um «clima». Há, repetimos, em vez de erro, acidente no processo artístico de actuar. O acidente não é nem desejável nem indesejável, apenas ocorre e integra a obra, alterando o seu rumo ou, simplesmente, causando algum tumulto numa sequência contínua de acontecimentos. Ao colocarmos a hipótese da existência de improvisação pura, ou ao reunirmos esforços para que exista, nunca o poderemos fazer segundo a óptica actualmente dominadora, tanto na crítica como nos processos de fazer arte, da estrita legalidade conceptual. Este modo de actuar na arte, esta rígida atitude perante a obra, seja como criador, crítico ou espectador, situa-se nos antípodas do modo de ver do fazer improvisado e as suas ferramentas são completamente desadequadas ao carácter da improvisação. Se artistas e público da arte improvisada assim não vêem, assim deveriam ver, porque só desse modo pode a improvisação ser relevante na sua proposta estética. Sendo o contrário da arte conceptual, a improvisação não a tem, de modo algum, presente para se justificar, negando-a. A ser o que é, esta arte será, não por reacção contrária, não pela assunção da forma concreta posteriormente negada como na pesquisa formal dos desconstrutivistas, mas tão-somente porque o indiciar de um modo de ser naturalmente encaminha o ser à via da busca da sua essência; o ser consciente da possibilidade de si, aperfeiçoa-se. Idiossincráticas do improviso são a sua forte humanidade e, sobretudo, a sua emanação caótica do cosmos, não indirectamente através de símbolos, ícones ou metáforas, mas no seu modo directo e concreto de efectivar. No contexto da arte, improvisar é a acção em tempo real da qual directamente brota a obra de arte logo forma ao ser formada. O seu modo de ser implica aceitar que improvisar sobre ideias impostas a priori é entretermo-nos com exercícios de virtuosismo inconsequente; implica entender que a ocorrência da arte improvisando deve provir de uma força vital, torrente de coisas reais no tempo em que ocorrem. Na improvisação relevante nada se aproxima, portanto, do mundo das ideias imutáveis e sem tempo. Aproxima-se sim do caos, da presença das coisas reais, mesmo que incompreensíveis e que, inexoráveis, ocorrem no tempo da sua aparição. Mesmo quando durante a improvisação estão presentes específicos modos de fazer apriorísticos, seja por exemplo no estabelecer do par «tema-variações», seja na comum estruturação arquitectónica, ou de qualquer outra espécie, tanto mais natural e forte se nos revela a obra improvisada quanto se desvia de premissas expectáveis.

O advento da arte conceptual, fenómeno com origem nas artes plásticas, eminentemente visuais, deslocou o âmbito da sua actuação da plasticidade e visualidade para as ideias como jogo linguístico. A primazia foi dada radicalmente à ideia como ente incorpóreo e sem tempo que, de algum modo, era negação do valor material da obra de arte que traduzia essa ideia (embora actualmente nos pareça que a ênfase da obra de arte herdeira da heróica arte conceptual pioneira se deslocou para o valor material que anteriormente negava[1]). A arte conceptual definiu-se, por isso, como lógica verbal que, no preestabelecer da argumentação em defesa intelectual do objecto material resultante, define a lei que rege a sua execução. A obra de arte proposta pela arte conceptual nasce da previsão da leitura das suas lógicas argumentativas internas, lógicas essas que, há que dizê-lo, são muitas vezes um pouco primárias e, outras vezes, rebuscadas. Quase sempre um seu constituinte físico e material procura no seu directo correspondente exterior (incorpóreo) a razão de ser (simbólica ou não) que lhe confere «legalidade». É, neste particular aspecto de formar, um género artístico muito bem comportado que sobrepõe, de certa forma, a pureza da ideia ao indivíduo e ao imediatismo das suas reacções humanas espontâneas, bem como à própria liberdade material da obra de arte.

O modo de ver da arte improvisada, pelo contrário, dá a primazia ao indivíduo, no seu existir mais directo e imponderado, sobrepondo-o como prova viva (animal, psicológica e mesmo mística) à importância da pureza de uma ideia. Um problema prático que, aliás, sempre se coloca ao artista improvisador consciente do seu acto artístico é o da gestão dos acontecimentos que vão gerando «sentido artístico convencional». Os músicos e bailarinos improvisadores, ao falarem da sua experiência criativa, referem que mesmo quando partem «do nada»[2], aos poucos, as coisas vão adquirindo sentido. Este sentido adquirido não é mais do que o «sentido artístico convencional», o sentido possível de reconhecer pela parecença à arte não improvisada, isto é, efeitos estilísticos de repetição, contraste, contraponto, diálogo, variações, estruturação arquitectónica e princípios conceptuais verbalizáveis à maneira da arte conceptual. Aparentemente, as obras de arte geradas pelo método da improvisação pura deveriam negar com prontidão imediata aquele adquirir de sentido. Isso, a maior parte das vezes, não acontece, dado que é comum elogiar-se, pelo contrário, a obra improvisada que parece não o ser.

O improviso define-se, sobretudo, pelo gesto, a acção desenhada num tempo e num espaço, específicos e conclusos. A improvisação é “performativa” e, como tal, empática com a música e com a dança, mas também com uma particular ideia de teatro, cinema e algumas artes plásticas (se bem que nestas com reservas, dada a possibilidade de eliminar registos, seja por remoção simples ou sobreposição, que ficam, desse modo, invisíveis na conformação final da obra). O improviso só é relevante como arte na medida em que o objecto artístico dele resultante revela de dentro, do seu artistismo, a acção ocorrida no tempo real (ainda que intuído) da sua génese, acção essa que só pode consistir na particular forma de compor a matéria pela acção instantânea do artista. É o artista que improvisa e a origem da acção artística pode caracterizar-se como interna embora, como referido atrás, factores externos «acidentais» contribuam para a conformação final da obra. Como tal, é obviamente tolice conceber improvisação pura de arquitectura, escrita ou fotografia, irremediavelmente dependentes que estão da origem externa dos elementos que as compõem e, do ponto de vista ético, dependentes que estão da ponderação do sentido (as primeiras) e da evocação do tempo congelado da realidade (a última). Embora se possa afirmar que o improviso, quando aplicado às artes plásticas, possui um espírito fotográfico e não cinematográfico[3], no caso da fotografia não é sequer possível conceber a ideia de improviso, nem mesmo em supostas obras resultantes do disparo ao acaso do obturador. O material fotossensível registaria como habitualmente apenas a luz disponível que nele incide e daquele acto essencial (e em última instância) nada resultaria que diferisse de disparos feitos com ponderação: a fixação da realidade externa por meio de um dispositivo e de um artista que, a partir de dentro, apenas aflora ao de leve a composição da matéria. Não seria o artista a improvisar e estaríamos apenas perante uma espécie de lotaria. Se improvisar é constituir, sem preparação e ao longo do tempo, a matéria que se mostra durante a acção artística, então, ao gesto único e instantâneo da fotografia fica vedada esta possibilidade porque o fotógrafo, ao disparar, não constitui a sua matéria (apenas a selecciona e regista) determinando nesse específico momento e a um nível mínimo, as relações compósitas que essa matéria estabelece.

O imediatismo do gesto e das decisões sobre a conformação da obra é indissociável da obra de arte improvisada, seja ela pura ou não. Esta instantaneidade coloca o improvisador perante problemas bastante concretos que existem exclusivamente no âmbito do seu método. Um dos mais pertinentes e comuns é o fascínio encantatório da consagração do seu virtuosismo técnico. Esta tendência resulta amiúde no uso do efeito artístico convencional, tal como descrito atrás, garantido pela vasta panóplia de recursos adquiridos e pela perfeição da sua aplicação. Neste caso, aceita e cultiva um «vocabulário» que assenta em estruturas arquitectónicas predefinidas e o estabelecer da obra, sendo feito em tempo real e de improviso, vem segurar a priori a coerência formal. Esta coerência, contudo, contraria a essência da improvisação, na medida em que aposta na obra «aceitável», composta por efeitos expectáveis, em vez de apostar na aventura sem bússola e mapa por territórios desconhecidos. Se através do improviso se pretende chegar a uma obra de arte que em tudo se parece à obra de arte «convencional», ponderada, para quê improvisar a obra? A resposta a esta pergunta todos os artistas improvisadores a sabem e, a saber, é: pelo incomparável prazer de criar de improviso. De facto, a experiência de improvisar proporciona ao artista um tipo de prazer e experiência muito diferentes das proporcionadas pela pesquisa artística convencional, mesmo que, em essência, o improviso resulte numa obra que não pareça improvisada e que nesse caso seja, comparativamente à obra ponderada, quase sempre mais fraca na sua consistência formal. É esse estranho tipo de prazer, que os artistas improvisadores tão bem conhecem, que os leva muitas vezes a abraçar a sedutora ideia de uma arte mística, dado que não conseguem eles próprios explicar as estranhas sinergias que tornaram de uma assentada a obra possível e, por raras vezes e à sua maneira, perfeita. A ânsia de transcendência que invade a psique do artista (e por vezes também a psique dos espectadores) durante a acção, entra em contradição com a realidade material crua, directa, da obra improvisada que, em última instância, é apenas uma associação de matéria que existe e tomou forma. Este acumular de matéria a que chamamos obra de arte não é de modo algum representação do estado psíquico do seu autor ou da sua condição existencial, à semelhança do que o informalismo quis em tempos genuinamente advogar. É, quando muito, um seu substituto simbólico por ser o resultado físico duma específica acção por ele levada a cabo. Se o indivíduo se encontrar representado numa obra improvisada, será sempre devido ao secundário recurso, consciente ou inconsciente, a figuras de estilo de reminiscência romântica e nunca pela implacabilidade e justeza directa do processo de improvisar. Nestas obras podem ainda encontrar-se marcas distintivas dos processos de fazer, mas essas, desde que haja consciência da arte, podem ser encontradas em obras de todas as épocas e de qualquer estilo e método.


2.ª Parte

Tentemos agora delinear os contornos de um método de improvisação pura e antever a sua fisionomia. Para arrumar esta escrita um pouco elíptica é necessário caracterizar, do ângulo da obra de arte improvisada, alguns dos elementos fundamentais do sistema completo de criação artística.

O artista.

Deverá o artista sentir-se totalmente livre ao aventurar-se nas suas pesquisas criativas? Embora caiba, em face de si mesmo, a cada artista responder a esta pergunta, afirmamos o seguinte: esteja menos ou mais consciente dos meandros das tendências em que actua, não deve seguramente sentir-se obrigado a seguir apenas um género, um método, um estilo, mas o ditame das suas inquietações, por díspares que lhe pareçam. Apenas três factores o podem conduzir à estreiteza da visão única: a inabilidade para actuar de outra forma, a implacabilidade de uma ética que o impeça de experimentar e o desproporcionado interesse em factores externos à arte (comerciais, de status inter pares, etc.). O infindável campo de liberdade que a improvisação pura poderia proporcionar ao artista seria um prenúncio da sua libertação da obrigatoriedade de criar uma correspondência lógica entre meio, técnica, símbolo, matéria, cor, ou qualquer outro elemento habitualmente usado para compor. Estas opções não estariam mais condicionadas à obediência a uma «legalidade» imposta à acção artística. Permitir-se-ia, através deste método, as mais inusitadas combinações de elementos, originando «objectos estranhos», não segundo princípios composicionais rígidos, mas antes segundo simples coexistência intuída. De referir mais uma vez que não se pode ignorar o peculiar prazer proporcionado pelo fazer arte improvisando e, como tal, há que ter em conta o elevado grau de satisfação e gozo pessoal do artista, o que desvela um carácter aparentemente frívolo da improvisação, de natureza recreativa, o que não livra o improvisador de constrangimentos e a obra improvisada de fraquezas.

O método.

A improvisação, em geral, pode ser aceite como método criativo levado a cabo através de técnicas adquiridas. Contudo, quando a classificamos de «pura», adjectivamo-la ao ponto de a considerarmos absoluta na sua idiossincrasia, característica que torna vaga a hipótese de poder estabelecer-se como método. Não poderá, sendo pura, a improvisação ser mais improvisada sendo ela mesma até às mais radicais consequências indiciadas pelo seu modo de ser e, deste modo, a mais improvisada improvisação concebível. Note-se que, ao não ser pura, é admissível que a improvisação como método pudesse originar obras que só ao de leve se assemelhariam a obras improvisadas (delas podendo não se discernir o peculiar método que as originou); ao sê-lo, a legibilidade da sua pureza impor-se-ia sem que fossem necessários dispositivos complementares para a evidenciar. Tornar-se-iam obra e método inextricáveis? Antes de sequer colocarmos esta questão deveríamos atender à alta probabilidade de inexistência de método nestas condições. Passamos a explicar. Para ser possível e relevante, a pesquisa artística baseada na possibilidade deste método deveria originar, na medida do absoluto reconhecível, obras diversas na sua conformação (diversas entre si e das demais obras por outros métodos originadas). A sua grande virtude seria a descoberta da livre variedade de formas, embora na prática talvez resultassem de uma não tão livre actuação, dada a constante necessidade da instantânea recusa de clichés para garantir a legibilidade e efectividade da sua pureza. A recusa do cliché representaria, assim, uma regra forçosamente imposta e, como tal, um obstáculo sério à integridade da espontaneidade de tal obra. Há que assinalar, no entanto, que sem técnicas não há método e, sendo pura, a sua aparição como obra seria virgem e nova a cada momento, o que eliminaria de imediato a possibilidade de existência da técnica idealmente adequada à natureza das suas formas emergentes. Mas aqui o raciocínio tem de ser feito no sentido inverso, isto é, as formas emergentes virgens e novas é que resultam de uma técnica anterior a elas. A ideia de técnica implica a existência de uma tradição nos modos de fazer, dado que, por definição, técnica é o conjunto de processos utilizados para obter um certo resultado. Esta acepção pressupõe a prévia identificação de um objectivo, o enunciar de um problema e o desenvolvimento de processos para o solucionar, procedimentos que são aparentemente incompatíveis com uma ideia de improvisação pura, a mais improvisada improvisação concebível, cuja técnica brotaria idealmente e em cada momento da própria génese do improviso. Não é possível à técnica ser técnica nestas condições mas, por outro lado, não parece também que sirva a qualquer género artístico comprazer-se no exercício da maior das incompetências na aplicação dos meios e dos raciocínios que tradicionalmente o definem. Por isso, à improvisação (pura ou não) podem servir as técnicas existentes dentro de uma tradição, caso contrário negar-se-ia o meio, pondo em causa um dos elementos essenciais à existência de arte. Para a improvisação pura talvez se possa advogar com propriedade que essas técnicas, dada a impossibilidade de se renovarem consistentemente a cada instante, deveriam preferencialmente denotar a ansiedade de quem obsessivamente procura o novo. As «velhas» técnicas, usadas «com propriedade» em improvisação pura, indiciariam o devir, definindo um vago método que devolveria em cada momento a ênfase ao gesto através das suas imediatas e radicais consequências, tentando tanto quanto possível eliminar quaisquer semelhanças a resquícios de preconcepção artística. As obras resultantes deste método seriam sempre «obras-acontecimento» num sentido diverso do da performance, porque não teriam necessariamente de ser apreendidas em tempo real. Apreender-se-ia sim a obra que resulta ou resultou de uma concepção em tempo real, obra essa que poderia, inclusivamente, desenvolver-se intervaladamente.

A obra.

As obras mais relevantes do ponto de vista estético são naturalmente aquelas cujo sistema propõe (ou sugere) um original intricado de factores lidos como inextricáveis. Indissociável do peculiar prazer do artista ao criar em tempo real e, de certa forma, usando-o para se veicular, as «obras-acontecimento» puramente improvisadas tornar-se-iam de imediato materialmente participantes do mundo externo ao artista. Inocentes na sua génese espiritual, divergiriam continuamente, recusando ser representação dos mundos cronologicamente estáticos da ideia, mas convergiriam, no entanto, continuamente no acumular de matéria do seu ser obra. Espiritualmente assentes na transitoriedade universal, no eterno fluxo das forças do cosmos, estas obras estariam talvez condenadas a uma indefinida permanência no limbo artístico por elas próprias criado e este seria, a par da sua dimensão eminentemente cronológica, o aspecto marcante da sua fisionomia. Por isso, a um primeiro olhar, dir-se-ia que cairiam sempre na já mais que gasta ideia de abstracção como oposto da figuração. Conclui-se, no entanto, que não seriam de nenhuma destas espécies: seriam objectos reais (e não realísticos) que não evocariam ou representariam mundos a eles exteriores. Limitando-se a ser o que seriam, aproximar-se-iam talvez da arte concreta.

Lisboa / Ponte de Sor, 2008-2009



[1] Este deslocamento para a materialidade manifesta-se tanto no uso de símbolos de integridade conceptual presentes no carácter dos materiais, tal como a pintura fazia e ainda faz com a cor e a textura, como na aceitação do objecto artístico de matriz conceptual tornado ente físico passível de adquirir valor “fetichista” e monetário.

[2] É difícil conceber que se comece efectivamente «do nada» porque, em última instância, parte-se sempre de si próprio e, como tal, de alguma coisa. Quando estes artistas referem que partem «do nada» querem dizer que improvisam sem tema e/ou sem plano de actuação que estruture a acção.

[3] Ver o meu ensaio “Arte e Improvisação – uma questão de identidade

2008/09/03

O INDIVIDUALISTA

(Preâmbulo de um livro por escrever)






















De algo existente partirá sempre o verbo. O longínquo começo do verbo, inidentificável seguramente será, faz-me imaginar um retrocesso radical e absoluto à origem das coisas, à origem de tudo, demanda um pouco pateta que conduz à aceitação da vaga ideia de verbo absoluto e original hipoteticamente contido no espírito que povoaria a matéria do espaço-tempo inicial. Matéria, espaço, tempo e espírito seriam indiscerníveis – se então possível fosse discernir – formariam um todo estático, o número 1. Não é muito diferente imaginar o início da congregação da matéria em cada ser humano que nasce, o início do verbo no indivíduo, mas neste caso aceita-se que haja um fluxo para as coisas que existem, que os homens provêm das misteriosas junções de matéria em eterno trânsito e que o verbo provém da imitação dos seus semelhantes, do mundo de outrora, para chegar a eles, entendê-los e, ancorados nesse entendimento e em cada momento, os indivíduos constituírem-se construindo-se. Nesta analogia universo – indivíduo, se 1 representasse o absoluto inicial, representaria o presente, traduzindo o sentido da multiplicidade infinita da existência material, temporal, espacial e espiritual que serve a acção dos homens.
Ao construir-se, o indivíduo constitui-se e, apesar de em cada momento ser possível por aproximação descrever o seu estado de constituição, aquilo que o caracteriza, nunca o indivíduo é definitivo, condição que prevalece desde que nasce até ao momento em que morre e deixa de ser. É da natureza humana existir na permanência do estado transitório do corpo e da psique. Não é concebível a afirmação da existência de pensamento ignorando o tempo e, consequentemente, o perene estado de mudança, simultaneamente cimento das ideias e alavanca primária do entendimento. O pensamento do indivíduo existe em constante oscilação reactiva a estímulos externos. Hesitação e temor da escolha paralisam por vezes a sua acção pois o percurso que se sente obrigado a trilhar, a ideia dessa obrigação como fantasma prospectivo do destino, pode vir a revelar-se inconveniente e inconsequente perante a preconcepção que faz do futuro.
Quando é sobretudo num mundo seu que o indivíduo age e solta o verbo, agindo para que o seu mundo tenda a manifestar-se a seus olhos, se nem sempre com beleza, pelo menos com esboçada estrutura estética e poesia, diz-se dele, no seu peculiar modo de estar, na sua atitude distintiva, que é artista. No entanto, da maioria dos seus gestos nada de relevante resulta. Multiplicando-se muitas vezes em vão, gestos e palavras espelham pensamento turvo e falsas intuições, isto é, embora possa manifestar-se em si plena de vigor, transbordante de energia, a acção origina sementes estéreis, objectos inconsequentes, enfim, lixo artístico que, dada a natureza “fetichista” da obra de arte, adquire por vezes um estranho valor intelectual, monetário e também artístico. A disponibilidade e a maturidade do artista são os factores cuja combinação ou é destrutiva, ou possibilita aos objectos resultantes da sua acção existirem como obras de arte. Quando a maturidade avança mais rápida que a sua disponibilidade para fazer arte, impondo a cada vez renovados padrões de exigência, o artista rejeita a obra antes de a completar. Na falta de discernimento para a rejeição, o mais provável é que da acção resultem obras frágeis.
Para além das relações tensas, equilíbrios e desequilíbrios entre disponibilidade e maturidade, é balançando entre o individualismo e a oportunidade que o artista por vezes falha – embora o individualismo seja o selo que valida o que ele é, ou que vai sendo, são a oportunidade externa às vicissitudes do indivíduo e a sua ausência que condicionam a escala e a pertinência da sua acção. Não é que o individualismo constitua uma alternativa oposta à actividade artística de grupo em plena comunhão social ou irmandade espiritual. Em arte, o individualismo não é, evidentemente, uma reacção ao estado das coisas; é, isso sim, consequência inevitável do decurso da vida como criador. A inquietação que a criação artística acarreta é sempre motivada por razões profundamente pessoais que embora possam derivar de e para interpretações que vão além da individualidade, são únicas e pertença daquele específico ser humano. Na actividade artística de grupo o contributo de cada indivíduo é, de algum modo e mesmo que no restrito respeito de directivas programáticas externas, reflexo individual que sempre se manifesta no seu modo de fazer. A obra de arte é, em parte, representação radical do próprio artista, não necessariamente em modo figurado de retrato ou auto-retrato, mas como se resultasse também de uma emanação que impregnasse a matéria que a constitui e define, do “ser do sujeito artista”, como uma fotografia idiossincrática do indivíduo que a criou (a ideia de obra criada sempre à imagem do seu criador). Esta característica é indissociável da obra de arte relevante, mesmo quando é da convicção do autor não deixar a sua mão visível na obra, atitude adoptada e defendida por vários movimentos e artistas plásticos durante os séculos XX e XXI.
Como ideia, a arte diz do tempo do criador e do tempo que molda a interpretação do mundo e cada indivíduo. Mesmo que o artista adie o verbo, a arte, que vacile, sempre se movimenta à superfície de cada uma das disciplinas artísticas que o extasiam. Durante anos ciranda ideias dispersas, vê fogos-fátuos, adia a obra colossal que lhe faz visitas breves, inquietando-o e excitando-lhe o intelecto. Alcança num vislumbre a sua totalidade, imagina os gestos largos, os pensamentos latos que se consubstanciariam na ideia emergente de obra, evidente na sua excelência. Esta aparição de obra magnífica, esta maravilha, rapidamente se torna refém e vítima da dúvida, do tempo, dos outros, e antes de se evidenciar como o colosso arrebatador e incontestável que o artista intuiu, capitula amiúde perante aquelas influências. A impressão de velocidade, esgotamento de recursos e efemeridade que o mundo actual reserva ao artista, agudiza ainda mais estas circunstâncias. À maturidade e à disponibilidade associam-se acção e influência externas e todas juntas formam a combinação de elementos que destrói ou impossibilita a conclusão – por vezes mesmo o início da exteriorização da sua existência no íntimo do artista – dessas hipóteses de obra. A maturidade caminha muitas vezes mais rápida que disponibilidade e oportunidade para fazer, impondo outros padrões de exigência estética e técnica, veiculando a inesgotável dúvida perante os padrões de exigência técnica e estética dos outros, imagine-os o artista superiores ou inferiores aos seus. Mesmo que os aborde apenas sob a perspectiva da diferença de carácter, com o tempo acaba inevitavelmente por os classificar por níveis de valor, não pela perseguição da glória pessoal (ser o melhor) mas porque é da natureza da arte ultrapassar-se reinventando-se em corpo e manifesto dentro de uma lógica de confronto entre continuidade e ruptura (o que não pressupõe necessariamente termos como progresso ou evolução). Só desse modo é possível ao artista interiorizar uma cronologia da arte com ênfase nas suas lógicas estéticas internas e não apenas no fenómeno histórico, sociológico e político.
Os diversos agentes da arte (artistas, críticos, mecenas, comerciantes e público) definem, num jogo de equilíbrios e desequilíbrios bastante complexo que envolve diversos factores que são, uns do interior das lógicas da arte, outros (que constituem a maioria) a elas exteriores, os diversos padrões de gosto que tornam as criações dos artistas aceitáveis, ou não, como ideia de arte “defensável” por um grupo de interesses. Das variações das interacções entre forma, conteúdo e método de elaboração se estabelecem os diversos padrões de gosto presentes nas diversas épocas e que espelham de modo mais ou menos directo a influência, por vezes tirania, dos grupos de interesse dominantes. O artista conhecedor das mais actuais tendências da arte deveria evitar mimá-las, evitar ser mais um de muitos. No tempo em que vivemos, com a fácil comunicação à escala global, esta acepção é ainda mais pertinente mas também muito mais complexa a sua persecução. Durante o século XX houve a tendência para que deixasse de ser considerado inovador o artista que inovava dentro de um sistema criativo existente, isto é, que se movia no conjunto de regras que definia uma “tradição” de fazer. O artista inovador passou a ser considerado aquele que inventava o seu sistema, ou seja, aquele que criava os próprios axiomas artísticos, deixando as regras de ser imposição externa para passarem a ser do interior de cada obra. Esta tendência tornou-se cada vez mais complexa e resultou na incrível disparidade de formas, estilos e conteúdos existentes na arte actual. Por um lado, assistimos a uma especulação formal prolífera que, há que referi-lo, é extremamente criativa e recebe aplausos fáceis, mas que se revela quase sempre desprovida de conteúdo. Por outro, presenciamos conteúdos aceites como “nobres”, mas cuja representação formal se nos apresenta gasta, por vezes enfadonha no seu disfarce de coerente e séria por insistir até à exaustão nos esquemas repetitivos e viciados de certa arte dita “conceptual”.
O artista actual é “mais artista” na sua permanente crise de criação face à contemporaneidade do que ao condescender na repetição de esquemas, vícios, lugares-comuns e, sobretudo, verdades alheias. As angústias criativas residem no dosear da vontade de fazer arte em face da disponibilidade e desperdício de tempo para definir e desenvolver a consciência de si, para que o seu ser se torne ou se descubra suficientemente forte para suplantar a vertigem do confronto com a contemporaneidade, instaurando novos padrões estéticos, para ir além dos padrões do gosto presente e dominante, ou seja, instaurando novas realidades artísticas efectivas. Assim sendo, a imersão na arte reserva muitas vezes ao artista o isolamento e a incompreensão, o fracasso público e pessoal. Ao artista resta hoje, e talvez sempre, ser obscuro, mergulhar profundamente em si, abraçar o individualismo como descoberta de um bem-estar irmão dos mistérios do seu universo. Impregnando-se de si deve evitar o maneirismo desenraizado. Ao isolar-se no seu individualismo, ao afundar-se, a pouco e pouco, na arte, o artista afasta-se dos grupos de interesse que definem os padrões de gosto que lhe podem trazer visibilidade no “mundo da arte”. Conclusão óbvia mas que atesta bem o dilema que atormenta o individualista – tornar-se invisível para chegar à arte mas necessitar de ser visível para fechar o ciclo criativo, divulgar a obra para que seja apreciada, vivida, depois de ter sido pensada, criada, executada (não necessariamente por esta ordem).
A arte só se manifesta verdadeiramente quando o sujeito que dela frui compreende que aquela experiência estética em concreto fez despertar uma profunda consciência da sua própria condição existencial; assim se fecha o ciclo criativo da arte, na acção do espectador. Num exercício mental de individualismo extremo, o artista restringiria a existência da obra de arte ao seu universo pessoal e seria de questionar se a tal objecto poderíamos chamar arte, isto é, se esta se manifesta no universo composto apenas por obra e criador. Pode-se afirmar sem grandes constrangimentos que o criador também é um sujeito que usufrui da obra de arte de sua autoria, inaugurando mesmo perante a obra a experiência de profunda consciência da própria condição existencial. Se assim não fosse com certeza não exerceria aquela actividade. O artista inclusive detecta, ou testa, através desta experiência inaugural a validade artística dos objectos por si criados recorrendo, mesmo que inconscientemente, à simulação da experiência de “fora de si”, porque para obter a experiência da sua própria condição existencial seria suficiente o processo formativo da obra (que, por si só, não a valida como arte). É no simular, imaginar, a experiência do outro perante a obra que criou, evitando reviver a experiência do processo formativo, que reside a prova do artista à validade da obra como arte. Mas o esforço de imaginar-se outro é duplamente patético dado que, por um lado, o artista está tão fortemente ligado aos objectos que cria que dificilmente conseguirá com eficácia ignorar o estado poético em que se envolveu ao fazer a obra e, por outro, nunca o espectador da obra sai de si (no sentido de ser outro e não no de atingir a transcendência) para dela usufruir. A obra só existe como arte na medida em que interpela o espectador, colidindo alguns aspectos da obra, positiva ou negativamente, com as características da sua personalidade e individualidade. Esquecer o decorrer dos actos formativos para, em certa medida, os reconhecer e reconstituir a posteriori, chegando finalmente à prova do artistismo, ou falta dele, parece tarefa impossível e residirá talvez aqui a célebre dificuldade dos artistas na avaliação e selecção das obras de sua autoria. Não diria, por isso, que a arte não existe no restrito universo artista + obra própria, mas diria contudo que sem público se tratará de obra de arte “órfã”, no sentido em que a paternidade/maternidade da obra cumprem ao artista (estado embrionário) e ao público (nascimento perante os sentidos na sua assunção artística).
Ao ver os seus objectos artísticos concluídos fisicamente, o artista vê os conceitos, isto é, a lógica ou a razão aplicadas às intuições poéticas, tornarem-se frágeis, por vezes mesmo ridículos face às razões que imagina do(s) público(s) e todo o preenchimento que antes foram fica tomado pelo imenso e grotesco vazio que volta a instaurar a dúvida. Para o artista a razão de ser da existência na arte é esta busca cega e surda, o absurdo do arterial fluxo de ideias e a sua representação fugidia, sempre condenada à incerteza, ao nada.
Estilo, efeito, conteúdo, forma – ainda e sempre a perseguição desta espécie de belo? A obra de arte genuína com certeza rejeitará o estilo e o efeito como apriorismos impostos à forma e ao conteúdo, orgulhosa, rejeita-os como acessórios para a tornarem aceitável. De trato rude, não condescende e é por isso difícil de detectar e reconhecer, se é que o confronto do sujeito com a grande arte se trata de reconhecimento – não se tratará antes de conhecimento? Assistimos hoje ao auge apoteótico do estilo e do efeito, tudo no “mundo da arte” é apelo à atitude maneirista. O uso abusivo de obras de arte em contextos variados como a publicidade, a televisão e muito cinema comercial, contamina-as miseravelmente e, parecendo que as divulga, apenas as rotula superficialmente, transformando-as, no imaginário colectivo, em meras mnemónicas de universos que lhes são alheios. O modo de fazer arte dos artistas, as suas próprias obras, já reflectem esta contaminação. Artistas há que assumem que as suas obras são evocações de reproduções de reproduções, nem sempre à arte referentes. Um certo discurso sobre as artes faz erradamente a equivalência desta espécie de mnemónica ao carácter icónico da obra de arte. Em arte, ícone deveria ser o objecto real que, simultaneamente na pertença ao universo de que é emanação e na dotação de extrema capacidade de síntese, representasse visualmente realidades profundas, muito ricas e complexas, aproximando-se mais do ícone religioso e afastando-se do grafismo da sinalética. A banalização e simplificação da ideia de ícone, resultante da incompreensão do seu verdadeiro poder simbólico e complexidade, tornou-se actualmente em paradigma mercantil, mesmo em disciplinas como a arquitectura e a música.
Com a banalização da sua divulgação e a contaminação atrás identificada, a arte tem perdido a capacidade de, como sistema, se igualar à natureza. A grande arte é real, ao passo que a realidade da arte menor é ser representação do real. Por isso, a arte menor não só se limita a representar a realidade natural e artificial, como imita também as realidades paralelas propostas pela grande arte. A grande arte nunca foi cópia ou representação da natureza e do artifício e sempre se insinuou, consciente ou inconsciente dessa sua condição e na parecença à natureza e ao artifício, como sistema autónomo, como “mundo em si”. A tendência para a radicalização do individualismo é, no artista, o seu combate interior contra a prevalência do óbvio na arte actual.
A visão que um outsider tem do mercado global e nacional da arte, por injusta e pouco fundamentada que possa ser, é a de uma excessiva oferta dita “cultural”, um louco frenesim que, pelo seu gigantismo, tudo reduz à ligeireza. Falta tempo para aprofundar o pensamento em tantas e tão díspares obras. Aparentemente, neste ambiente hiperbólico e ultra-caótico (de que a world wide web constitui o paradigma porque raramente apresenta obras de arte mas antes a sua pálida reprodução) triunfa o artista de obra rápida e tautológica, características às quais estranhamente muitos associam a conjugação dos termos “coerência artística”. De tanto se repetir nas escolas de artes que o portfolio de um artista visual se deve organizar de determinada forma, criou-se nisso uma fé inabalável e essa regra, por ser da maioria, ganhou trejeitos de inquestionável. Atingimos o espantoso absurdo da tirania do portfolio, isto é, a vontade de ter sucesso a fazer arte leva os artistas à elaboração de obras que “rimam” umas com as outras, aprisionadas ao estilo ainda antes da sua génese, vergam-se à coerência da regra de marketing, perdendo a sua razão de ser que deveria ser, em primeira e última instância, ser arte. O mercado da arte trata-a, obviamente, como mercadoria e para entrar em qualquer jogo deve obedecer-se a determinadas regras. Pede-se clareza e eficácia – auto-catalogação das obras de um mesmo artista que se restringem, de preferência, à constante auto-citação e semelhança para, claro está, atingir as expectativas e o protectorado dos detentores do poder de decisão quanto ao que vende e constitui lucro. As obras de qualquer artista tornam-se, desse modo, reconhecíveis, o que facilita o lucro através do comércio de originais que, no fundo, não passam de réplicas de peças com características de sucesso, cuja produção se repete, de preferência, até ao esgotamento.
O que se torna ridículo em obras cuja concepção é exclusivamente auto-referencial é a instantaneidade da queda no lugar-comum, o eco. Trata-se de uma tautologia muda porque neste jogo sem sentido a obra adquire razão de ser na leitura de si mesma a reformar-se ou, descrição talvez mais correcta, na reprodução da previsão do que pode vir a ser reproduzido. Sobre a sua génese e o seu finalmente “ser-como-obra” paira sempre a sombra da fraude.
Sublinhe-se de novo a oposição da obra que aspira a ser conhecimento, à obra que aspira a ser “reconhecimento”; da arte que é real, à que imita a realidade natural e realidade paralela proposta pela grande arte; da que inova porque pulsa viva, à que perpetua na ânsia de agradar. A primeira não dá relevância fundamental ao tempo de resposta do espectador, tende a ser de fruição lenta; a segunda busca a apreensão estética imediata e rapidamente se torna irrelevante a um nível mais profundo. O criador atento à falsidade do apelo encantatório do segundo tipo de obra, que de resto considera repulsiva, cultiva o individualismo para dela se afastar, fazendo fé na aproximação à grande arte, a única que colide com a sua particular sensibilidade.
Duas ideias de artista, opostas, estão assim em permanente confronto na arena da arte e na mente do artista: uma, a do artista que produz obras; outra, a do artista que cria obras de arte. O primeiro, pragmático, encaixa-se com à-vontade nas expectativas externas quanto ao que deve ser a obra de arte; o segundo, desinteressado das frivolidades, vive obcecado com a edificação do seu mundo.

Lisboa / Ponte de Sor, 2007 / 2008

ilustração: desenho de Nuno de Matos Duarte "Sem Título" (2004) , tinta-da-china sobre papel

2007/03/25

Imaginário do Artista - 8 - Três Palavras Obscuras
































ACÇÃO, em arte, é o movimento criativo organizador de elementos que são parte integrante de um MEIO, fixando-os formalmente num SUPORTE. O modo de organizar aqueles elementos pode, por vezes, em vez de em forma estável, manifestar-se numa forma instável. No entanto, essa instabilidade respeitará sempre determinados parâmetros, sendo esse seu particular modo de se manifestar a razão de ser da ACÇÃO. Pode dizer-se que a acção define o “género artístico”.
MEIO, em arte, é o conjunto de elementos que, ao concretizar-se em organização que origina forma, estabelece a comunicação entre o artista e o fruidor ou, noutro plano, é aquilo que possibilita a existência de ACÇÃO sobre o SUPORTE.
SUPORTE, em arte, é o lugar, superfície ou matéria de sustentação no qual se inscreve a ACÇÃO que origina a obra de arte.

A obra de arte, em função destas definições sumárias, integra em si-mesma ACÇÃO, MEIO e SUPORTE, bem como artista e fruidor, nem sempre sendo lícita a distinção e identificação destes termos em presença da obra.

Dizemos: pintar é a acção; as tintas coloridas e os pincéis, espátulas, etc. são o meio; a tela ou a tábua são o suporte.
Dizemos: esculpir (lavrar) é a acção; o cinzel é o meio; a pedra ou a madeira são o suporte.
Dizemos: o projecto de arquitectura (vocacionado para a construção) é a acção; os vazios, os cheios e a sua natureza são o meio; o meio ambiente é o suporte.
Dizemos: compor é a acção; os sons e os silêncios são o meio; o tempo e o espaço são o suporte.
Dizemos: fotografar (como termo lato que inclui também a pós produção da imagem) é a acção; a incidência da luz nas coisas e seres é o meio; o filme, o papel ou o ecrã são o suporte.
Dizemos: dançar é a acção; o corpo humano em movimento é o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: performance é a acção; o corpo humano e objectos de natureza diversa são o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: body art é a acção; a própria arte, os seus dogmas transfigurados simbolicamente nos objectos que inscrevem, são o meio; o corpo humano é o suporte.
Dizemos: escrever é a acção; as palavras, frases, parágrafos, etc., são o meio; qual será efectivamente o suporte da escrita? – embora nele se apoie a caneta, o papel não será seguramente; mais correcta é a afirmação de que é a língua o suporte da escrita; em última instância é o cérebro humano.

Beuys afirmou: «pensar é esculpir», isto é, pensar (através da arte) é a acção, a própria arte é o meio e o cérebro humano é o suporte cuja morfologia (mesmo que a micro escala) efectivamente muda.
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Ilustração: Nuno de Matos Duarte, “autoR”, 2004, Tinta-da-china s/ 30 folhas de papel A4, 178,2 x 105 cm

Imaginário do Artista - 7 - O quotidiano como matéria de artes visuais
































Emmet Gowin
“Edith”, Danville, Virgínia, 1970
“Family”, Danville, Virgínia, 1970





































Harry Callahan
“Eleanor and Barbara”, Chicago, 1953
“Eleanor”, Chicago, 1953



Há ideias incorpóreas de arte que vagueiam anos a fio pelos fluidos turvos do nosso espírito. Imateriais permanecem, ou porque não encontramos a chave para as transmutar, agregando os seus aspectos dispersos em forma consciente para o “mundo real”, ou simplesmente porque nunca procurámos/construímos essa chave e nos mantivemos atávicos sem o querer-alavanca que as fizesse emergir do lugar incerto onde habitam. Nestas condições encontro a ideia de fazer arte partindo do que me é mais próximo, ideia que, confesso, sempre me agradou. Se ao falar de matéria falar de coisa física, com massa, afirmo que usei radicalmente o que encontrava “mais à mão” para fazer arte (umas vezes com resultados felizes mas quase sempre de forma desastrosa). Se, ao invés, ao falar de matéria falar do campo das ideias, da “temática”, apenas esbocei pouco convictamente umas coisas fracas e tímidas, até porque o empenho, por medo da seriedade destes assuntos, foi sempre pouco. Os “tijolos” das obras serem aspectos íntimos do meu quotidiano é uma ideia que me fascina desde que sei da existência de Picasso, autor de notabilíssimas obras, ao longo de décadas, nas quais um número reduzido de elementos do seu dia-a-dia, associados, constituíram um meio inesgotável para fazer arte: uma mulher (modelo mas mulher que partilha a habitação com o artista), um espaço (a casa mas, sobretudo, o atelier do artista), o artista e, finalmente, a arena da arte, lugar onde tudo isto é posto em confronto e lugar que se confronta consigo mesmo enquanto lugar que se auto define (os materiais da pintura, telas, papeis, tintas, História da Arte).
Outro meio que tanto se presta à arte cuja fonte de poesia jorra directamente dos espaços e pessoas que nos são familiares, é o meio fotográfico. Tomando o quotidiano como ponto de partida a fotografia, ao dar-nos a ver de novo o que os nossos olhos viram mas de imediato perderam, confere à sensação visual efémera uma perenidade selecta que dificilmente se livra de vacilar na linha de fronteira entre o olhar que reporta e o olhar que transcende.


DOIS FOTÓGRAFOS – EMMET GOWIN E HARRY CALLAHAN

No livro “Emmet Gowin: Photographs” o autor refere-se às fotografias que realizou como «um dever natural que honre aqueles que ama». Desde logo ficamos a saber que o seu compromisso não é com o “mundo da arte”, a sua arte é antes uma dádiva aos seus entes queridos. Diz que as fotografias presentes no livro são parte do seu dia-a-dia e não resultam de projectos ou encomendas. Elogia os snapshots e as fotografias dos álbuns de família como sendo das fontes de imagens mais ricas que conhece. É evidente que a sua arte vai além da recordação de família essa demanda reside no penetrar, através da arte, fundo nas noções de identidade e de sentimento de pertença (aos lugares e aos entes queridos). Mostrando universos íntimos, logo quando da escolha do enquadramento e composição da imagem antes da fixar, esta vai adquirindo peso simbólico que na imagem se manifesta com forte emoção, entrega apaixonada e espanto perante a vida. Na reflexão sobre si mesmo e sobre a sua condição existencial, o artista extravasa para aspectos essenciais à existência humana, imprimindo à sua experiência pessoal, através da arte, contornos universais. Para além destas evidências conclui-se que o simbolismo destas fotografias “familiares” de Gowin resulta também, em parte, da técnica fotográfica usada. Não que a técnica por si só tenha algum valor artístico, porque só quando surge perante os nossos olhos tão intrincada nas formas e nos conteúdos que seria impossível imaginarmos a obra que observamos configurada de outra maneira, é que se torna digna de registo e admiração. No caso destas fotografias trata-se do efeito de distorção circular exagerado que uma lente Angulon para câmara de pequeno formato faz quando associada a uma câmara Eastman View 8x10. Li algures a opinião de alguém (não sei quem) que classificava a estética destas fotografias de “gótica”. Não é essa a palavra que me ocorre. Ocorre-me sim a palavra “expressionista”.

O processo de trabalho usado por Harry Callahan para a conformação da sua arte era, aparentemente, simples e rotineiro: sair de casa quase todos os dias de manhã com equipamento fotográfico, caminhar pela cidade e fotografar. À tarde fazia diversas provas dos que considerava serem os melhores negativos. Deste trabalho sistemático seleccionava pouquíssimas imagens finais. Um método o qual, simplificando, caracterizaria como “coleccionismo e escolha”. Em arte significará o mesmo que procura persistente, análise detalhada e profunda reflexão. As fotografias de Callahan possuem um forte sentido de volume e composição, tomando linha, luz e sombra o protagonismo. Nas imagens mais conhecidas do autor podemos ver a sua mulher e/ou a sua filha, Eleanor e Barbara, em espaços interiores e exteriores, urbanos ou naturais. Ocupe a maioria do quadro ou apresente-se longínqua é a figura humana que cativa de imediato o olhar porque surge sempre do mistério da luz e da sombra. O jogo que presenciamos quando olhamos para estas fotgrafias é bastante complexo. Por um lado, fazendo as pessoas e os lugares parte do quotidiano do artista, em momento algum podemos afirmar que se tratam de retratos – não são representações da personalidade ou dos traços fisionómico psicológicos das pessoas representadas – nem tão-pouco de descrições espaciais de um lugar, do captar do seu genius loci (embora em outras fotografias de Callahan o genius loci esteja bastante presente). No que à representação espacial diz respeito verifica-se inclusive que estas imagens estão longe de cair na tentação que os dedos dos fotógrafos têm habitualmente por pressionar o botão de disparo da câmara perante motivos de imaginários exóticos ou pitorescos. Callahan, ao tomar como matéria da sua arte espaços e pessoas que definiam o seu quotidiano, não procurou mostrar como são, quem são, ou o que são. A sua poética tende para a abstracção, embora atendendo a quão subtil pode ser a natureza dos símbolos. Por outro lado afirmaria que, sabendo que o autor partiu de um persistente trabalho de recolha, o momento chave da análise dessas imagens terá sido o da descoberta dos signos ou dos significados latentes. Excluindo algumas imagens onde é mais evidente uma encenação criada antes do disparo para obter um determinado efeito, perante outras aparentemente mais espontâneas apetece-me exclamar «E, subitamente, a arte perante os meus olhos!». Terá o autor experimentado uma sensação semelhante ao ver algumas das imagens que ele próprio recolheu? É uma pergunta pouco relevante, pois as imagens aí estão como são e como as vejo, mas provavelmente a resposta é sim. Admitamos então que Callahan, de facto, descobria a arte e a poesia do modo aqui descrito: não penso que a maioria destas imagens tenha sido trabalhada a priori de forma fria e meticulosa, nem tão pouco que tenha sido obtida durante qualquer espécie de devaneio ou arrebatamento sentimental. Penso sim que resultaram de uma atitude expectante, atenta, embrenhada serenamente na crença de que o ambiente perante os próprios olhos é propício a que as coisas aconteçam, não sabendo bem como antes de acontecerem. É possível interpretar estas imagens tentando perscrutar símbolos precisos que poderiam corresponder a factos ou sentimentos relativos à relação do autor com Eleanor e Barbara. Naturalmente Callahan usou esses meios, reflectindo sobre si próprio, transpondo posteriormente a reflexão para os ambientes e pessoas presentes nas fotografias. É assim que se constrói obra. Mas acima de tudo há aqui o fazer arte colocando em confronto na arena da técnica fotográfica seres humanos, espaços interiores e exteriores, objectos, luz e sombra, conseguindo revelar ao relacionar as ínfimas percepções., mais do que a «boa fotografia» a poesia fundada na subtileza e na serenidade.

Curiosamente, ao fazer a minha pequena pesquisa para a elaboração deste texto e já durante a sua redacção, tomei conhecimento de que Gowin foi aluno de Callahan na Rhode Island School of Design, E.U.A. A associação que inicialmente fiz entre os dois artistas-fotógrafos deveu-se apenas à correspondência de dois nomes a dois conjuntos de imagens que espelham resultados diferentes, até mesmo opostos, no tomar da mesma matéria para fazer arte, neste caso, o quotidiano. Não deixa de ser interessante constatar esta outra proximidade entre ambos.
Ter-se-á tornado evidente aos leitores dos meus textos (que os deve haver apesar de em reduzido número) que ao escrever sobre arte a caneta me foge para uma abordagem bastante restrita sobre o que considero arte e que, à partida, rejeita muito daquilo a que hoje se chama “produção”, “mercado” ou, aplicado ao comércio de derivados da música e do cinema, “indústria”. Só muito raramente percepciono arte nestes meios e é esta pura sinceridade, com a qual tento expor por palavras escritas o que sinto e o que penso sobre estes assuntos, que procuro também encontrar nas obras dos artistas. Acredito profundamente que a única resposta que estes podem dar em contraponto à confusão que o comércio de objectos e a indústria do entretenimento estabelecem em redor da arte é serem genuínos e corajosos na manifestação da sua visão do mundo. Os dois artistas-fotógrafos cujas obras (parte delas) eu tentei aqui resumidamente interpretar à luz da minha sensibilidade e modo de racionalizar as coisas, tomaram como matéria de arte a intimidade de factos que aconteceram (provocados ou não) perante o seu olhar. Julgo que se tratam de dois bons exemplos, complementares, da temática deste texto posta em prática – partindo com meios simples do mesmo tipo de matéria que pulsa, viva, chegam a lugares muito diferentes na forma, pois diferentes são os homens.

Imaginário do Artista – 5 – Gerhard Richter e a Pintura


















































“Sem Título (570-4)”, 1984
Óleo sobre tela
65x80cm

“Veneza – Escada com Isa (586-3)”, 1985
Óleo s/ tela
50x70cm

“Grupo de Árvores (628-1)”, 1987
Óleo s/ tela
72x102cm



Tenho o hábito de passear distraidamente os olhos por livros ilustrados. Página após página o olhar espreguiça-se nas imagens que se sucedem, uma, outra, mais outra e mais outra e por aí fora. Períodos há em que revisito frequentemente um mesmo livro ilustrado com este meu olhar preguiçoso e o desfilar das imagens adormece-me, vou deixando de pensar em coisas – letargia cerebral que muito me apraz. Qualquer livro com reproduções de obras de arte merece a minha preferência nesta actividade um tanto absurda, que consiste, no fundo, em estar perante mundos complexos que desfilam sem lhes dar, naquele momento, nenhuma importância. Apenas os vejo, constato que existem e que estão ali expectantes nas páginas dos livros, para que um dia possa mergulhar e embrenhar-me neles.
Houve um período em que três reproduções de outras tantas obras de Gerhard Richter quebravam teimosamente a indolência das deambulações errantes do meu olhar pelas imagens de um livro sobre arte contemporânea. O livro ganhou jeitos e vícios de forma, passando a abrir-se por si só naquelas páginas. Àquela data Gerhard Richter não tinha merecido a minha atenção como artista. Só ao dar-me conta de que aquelas imagens (por sinal bastante diferentes entre si) me interpelavam de algum modo, mesmo sem que sobre elas estabelecesse qualquer raciocínio, é que disse para mim mesmo: vamos lá vencer a preguiça e ver o que estou a ver, vendo, depois, quem é que fez isto e que mais fez ele que possa ser visto.
E que via eu?
Numa das pinturas, sobre um fundo etéreo e profundo, arrastos espessos de cor a espátula e pincel que, ora sobressaindo com violência, ora definindo planos coloridos que mergulhavam no fundo, criavam o espantoso espaço e tempo de um mundo fantástico. Era uma pintura cujos princípios reconheci como sendo semelhantes aos que pautavam à época as minhas próprias tentativas de pintar e que consistiam, resumidamente, na capacidade de a arte aparentar a sua própria génese como mundo, ao mostrar a representação de um espaço impossível que se forma perante os nossos olhos. A minha descoberta pessoal das pinturas abstractas de Richter afectou decisivamente o rumo da arte que procurava fazer na altura porque a minha reacção à mesma foi a de me libertar daquele modo de pensar a génese da obra de pintura, não fosse ela vir a ser confundida com uma imitação rasca da obra de um pintor enorme.
Na segunda pintura nada se assemelha à primeira, excepto a técnica (pintura a óleo sobre tela) e o autor. É desde logo notável constatarmos que o autor das duas pinturas é o mesmo. Mas, se atendermos ainda ao facto de os dois quadros não corresponderem a duas “fases” diferentes da carreira do artista, cronologicamente separadas, mas antes a duas abordagens que se desenvolveram a par, mais notável se torna. Esta segunda imagem, a meu ver transbordante de poesia, possui a aparente banalidade da fotografia de férias, do certeiro slogan da Kodak «para mais tarde recordar». De facto, Richter utiliza fotografias suas, pessoais, como tema dos seus quadros, ou nas suas próprias palavras, usa a pintura como veículo para as fotografias. Pensar sobre esta imagem colocou-me perante a seguinte dúvida: porque consideramos banais as fotografias íntimas, pessoais ou familiares? Por se terem vulgarizado? Pela sua falta de requinte técnico e de composição? Pela sua objectividade? Se formos ao fundo da questão concluiremos que de banal nada têm os valores e temas subjacentes a elas, porque este género de fotografia despe-se de toda a retórica (ou nem sequer a chega a conhecer) para se concentrar nos afectos. Fotografamos aqueles que amamos, os locais onde estivemos e as pessoas com quem estivemos simplesmente para os registar e fazer perdurar na memória através de uma imagem. O valor da imagem não reside em si mesmo, mas sim no amor genuíno que nutrimos pelos objectos e seres nela representados. Tratam-se de imagens muito subjectivas cujo tratamento é o mais objectivo possível. Tornam-se universais porque todos encontram nelas os seus próprios valores. Todos sentem necessidade de fazer este tipo de imagens porque a “democratização” da técnica fotográfica, felizmente, assim o permite. Se há tantos disparates que subitamente parecem ganhar valor apenas porque alguém com acesso ao “meio artístico” os decidiu introduzir na “esfera da arte”, porque motivo seria incorrecto trazer à arte imagens tão genuínas e poéticas, que evocam o nosso passado, aquilo que somos e os objectos, seres e lugares que são essenciais às nossas vidas? Richter fê-lo através da pintura, o que dificultou a tarefa da análise crítica e académica forçados que foram a confrontarem-se com os jogos de linguagens entre pintura e fotografia. Nan Goldin, por exemplo, fê-lo de modo mais directo através da própria fotografia.
Contudo, esta segunda pintura apresenta-nos mais do que o snapshot circunstancial. Não se trata de uma imagem qualquer. O título fornece-nos três elementos-chave: Veneza, a escada e Isa. Ao lermos o quadro da esquerda para a direita verificamos que o meio do quadro é uma fronteira clara: do lado esquerdo a superfície da tela é ocupada por um espaço relvado e árvores protectoras que dão abrigo e sombra; do lado direito é ocupada pela vastidão nublada e azul das águas calmas da lagoa. Ao lermos o quadro de cima para baixo vemos que o meio do quadro é marcado por um caminho de terra batida que, partindo de uma discreta mas misteriosa sombra à esquerda, encaminhou Isa ao patamar superior da escada que desce até à água, mas também até ao patamar mais baixo e próximo do observador do quadro. A atmosfera é extraordinariamente calma, lendo-a eu como uma paz melancólica ao observar a postura introspectiva de cabisbaixo desalento de Isa perante a mórbida lagoa. Isa deixou atrás de si, largado no chão, aquilo que parece ser uma peça de roupa (um véu?). Vacilando entre uma e a outra metade do quadro, o véu (?) posiciona-se na fronteira entre o verde protector e o vazio da lagoa tendendo, no entanto, claramente para o lado da lagoa. Isa terá feito uma escolha? Ao olhar este magnifico quadro não posso deixar de me recordar do destino que os protagonistas dos livros “Morte em Veneza” e “Na Outra Margem entre as Árvores”, respectivamente de Thomas Mann e Ernest Hemingway, foram encontrar em Veneza: a morte.
Da terceira pintura diríamos seguramente tratar-se da coexistência dos dois tipos de quadros atrás descritos, na qual o abstracto mundo de autonomia pictórica se sobrepõe a um outro, figurativo, que revela um profundo e codificado universo interior. Mais do que simplesmente sobrepor-se, o abstracto vai ao encontro do figurativo – aqueles violentos arrastos de tinta, contrapondo-se em textura à velada superfície da representação de uma paisagem com árvores, faz eco das suas tonalidades. É como se o pintor passasse com uma espátula larga pelos restos de tinta da paleta que compôs a pintura figurativa e borrasse, literalmente, essa mesma pintura com os próprios restos que são também, no fundo, a matéria bruta de que é feita – o “Ceci n’est pas une pipe” de René Magrite contado de outra maneira?

2007/03/23

Imaginário do Artista - 4 - Defeitos e Virtudes do Conceito de Série (2.ª Parte)





























Claude Monet

Da esquerda para a direita e de cima para baixo, quatro quadros da mais extensa série “A Catedral de Rouen”:

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain na Aurora”, 1894
Óleo s/ tela
106x74cm
Boston, Museum of Fine Arts
The Tompkins Collection

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Sol Matinal”, 1894
Óleo s/ tela
91x63cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain em Pleno Sol. Harmonia azul”, 1894
Óleo s/ tela
107x73cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Tempo Cinzento. Harmonia Cinzenta”,1894
Óleo s/ tela
100x65cm
Paris, Musée d’Orsay



Vimos no texto anterior que se tornou comummente aceite como arte o uso de um modus operandi sistemático e repetitivo sobre um determinado tema quando a obra se apresenta como conjunto sequencial de peças, como “série”. Torna-se por vezes difícil de discernir a honestidade da atitude serial, isto é, se esta irá, de facto, para além do artifício que tira partido da preguiça do espectador, fazendo-o aceitar um conjunto de objectos ocos mas semelhantes como notáveis obras de arte. A repetição que se apresenta como possibilidade até ao infinito (através de sucessivas variações) de exploração de uma mesma ideia, tema ou objecto, parece ofuscar o seu valor intrínseco, convencendo-nos de estarmos perante consistência e coerência artística mesmo quando ambas não estão presentes. A repetição e a insistência obstinada num mesmo método ou tema não torna o artista necessariamente coerente, porque em última instância a coerência apenas pode provir da verdade e esta do ser genuíno, nunca do charlatão. O artista coerente, ou melhor, o artista, é aquele que na sua inabalável posição de verdade e índole genuína transforma esse seu modo de ser em obras que, por esse motivo, são únicas e irrepetíveis. Tudo o resto está, a meu ver, fora da esfera da arte. O sucesso e excessivo entusiasmo por obras que se apresentam como série deve-se hoje, talvez, à facilidade de identificar, num repente, artistas através de uma imagem/reprodução observada nos meios de comunicação. Deste modo, artistas, obras e estilos organizam-se e catalogam-se logo no momento da sua génese, facilitando os meios de divulgação, publicidade e crítica. Método inegavelmente prático mas, ainda assim, trata aspectos que pouco deveriam importar ao artista.
Se recuarmos até às primeiras tentativas conscientes do uso da série em arte, veremos que nem sempre a ênfase foi entregue ao “como” e que, pelo contrário, a experimentação do “como” provinha do “o quê”. Nos vários quadros que compõem a série da Catedral de Rouen, Claude Monet repete de quadro para quadro a estrutura da composição, fazendo variar a atmosfera e o carácter da luz que sobre ela incide. Observa a fachada do mesmo local mas apresenta dela visões separadas no tempo, fixando-se nas notáveis características escultóricas do objecto. Do indagar à volta da complexidade visual que a ideia de escultura encerra em si mesma, do projectar dessa indagação na fachada da Catedral de Rouen, Monet fez emergir o “método” da série. Opta por representar a fachada parcialmente, ou seja, em nenhum momento pretende apreender ou decifrar do rendilhado de pedra os princípios da geometria latente do edifício. A comunhão que o artista efectua com o objecto que constitui a génese da sua proposta de arte é antes o fascínio pela qualidade da luz que o modela (como se revela a luz no objecto, como aparece o objecto por ela revelado). A transitoriedade da luz, a sua inconstância, escapa-lhe a cada momento. Ao apresentar a multiplicidade das “aparições” do objecto segundo o carácter da luz que o banha, o artista embrenha-se na impossibilidade de aprisionar a verdade da sua forma. A chave para ultrapassar essa impossibilidade descobriu-a Monet mais na invenção da luz, do que na impressão da luz, ao contrário do que poderíamos supor dado tratar-se o autor daquele que definiu artisticamente o género impressionista.

Imaginário do Artista - 3 - Defeitos e Virtudes do Conceito de Série (1.ª Parte)

























Bernd and Hilla Becher
“watertowers”
1967-80, (impressão em 1980)
Impressão em gelatina de prata
Cada impressão com 37,9x30,2cm
Sonnabend Gallery


Anonyme Skulpturen: A Typology of Technical Buildings” (Escultura Anónima: Uma tipologia de Edifícios Técnicos) – assim se referiu o casal Becher à sua obra fotográfica. Ao longo de quatro décadas Bernd and Hilla Becher propuseram-nos arte que consiste numa espécie de classificação funcional e tipológica de arquitectura industrial vernacular, através de fotografias a preto e branco de escala modesta, agrupadas por vezes em grelha. A execução destas fotografias respeita regras bastante rígidas. A meu ver, ao corpo da obra dos Becher associaria a expressão “estética neutra”, porque a sistematização do seu procedimento artístico não é mais do que a persecução de um objectivo estético que resulta na configuração de uma poética que é, em certo sentido, documental – o registo da morte emergente da era industrial. Cada fotografia corresponde a um único objecto arquitectónico, fotografado de frente a meia altura. O posicionamento da câmara fotográfica a meia altura torna visível, na medida mínima, o contexto paisagístico no qual o objecto fotografado se insere, o que permite o entendimento da escala. São escolhidos dias de céu nublado para fotografar pois pretende-se uma luz homogénea que anule o mais possível o efeito claro-escuro, aumentando a gama de cinzentos visível. Todos os eventuais incidentes observáveis, tais como a presença de pessoas, animais ou vegetação são evitados, prevalecendo mais uma vez a objectividade sobre o expressionismo (ou a rejeição completa de quaisquer traços expressionistas). A neutralidade das imagens assim descritas enfatiza a forma dos objectos, pois nela se concentram todos os recursos da técnica artística. Qualquer tentativa de análise do ponto de vista da antiguidade relativa dos objectos fotografados ou do seu contexto social torna-se impossível – impera a forma. A repetição em grelha reforça esta ideia, pois promove a comparação visual directa entre tipos de formas que cumprem uma mesma função prática.
O modus operandi de Bernd and Hilla Becher fez escola e, de certa forma, tornou-se banal reconhecer mérito artístico a quem apresenta objectos que resultam de uma acção sistemática, repetitiva e “impessoal” sobre determinado tema (por vezes não importa qual acção ou o que tema, bastando a “tendência estética”). Este facto não retira mérito algum à força da obra genuína dos Becher, demonstrando, pelo contrário, o seu tremendo impacto nas práticas e pensamento da arte actual.

Imaginário do Artista - 2 - Piazza











Alberto Giacometti
“Piazza”
1947-48
Bronze
21x62,5x42,8cm
Collezione Peggy Guggenheim, Veneza


Sobre uma “tábua” que representa o espaço da praça, Alberto Giacometti apresenta-nos cinco figuras humanas de pequenas dimensões quando comparadas a figuras isoladas feitas anteriormente pelo autor, nas quais tinha optado pela escala natural. Compreendemos o porquê da miniatura porque o drama que caracteriza esta obra só se torna evidente visto de cima, com o olhar do espectador a abarcar a totalidade da cena. As figuras que observamos na piazza são típicas de Giacometti, matéria bruta moldada directamente com as mãos que dão forma a corpos esguios, anónimos, que parecem dissolver-se na atmosfera e que constituem metáforas impiedosas da condição existencial do homem. Os quatro homens caminham obstinadamente em linha recta, atravessando em diagonais a praça. As direcções e suas posições relativas no espaço indicam que não estabelecerão contacto físico uns com os outros. A determinação cega do seu movimento parece também anular à partida qualquer desvio que os conduza ao encontro. A figura da mulher, imóvel, olha na perpendicular do comprimento da praça e num ponto dessa perpendicular se interceptarão os trajectos dos quatro homens, embora em momentos diferentes. A praça, espaço público por excelência e centro nevrálgico das relações humanas dos habitantes de uma comunidade, surge-nos aqui devastada pela indiferença dos homens. Interpreto a imobilidade da mulher, colocada em confronto com essa indiferença, como uma figura sonhadora, imbuída de humanidade, mas sem esperança.

2007/03/16

Imaginário do Artista - 1 - Mona Lisa




















Leonardo Da Vinci
“Mona Lisa”
(ou “La Gioconda”)
Óleo s/ painel de madeira
77x53cm
Museu do Louvre, Paris

Curiosamente, aquela que é considerada a pintura mais famosa do mundo é também a primeira que me lembro de ver e a que me fez tomar consciência da existência da arte, embora até hoje nunca a tenha visto senão em reproduções. Ainda não frequentava o ensino primário quando me familiarizei com aquela imagem. Havia uma reprodução da Mona Lisa emoldurada e pendurada na parede da salinha da casa da minha vizinha do 2.º andar do prédio onde morava e com cujos filhos ia brincar regularmente. O quadro estava pendurado um pouco alto numa parede que recebia sol de nascente e eu via aquela estranha senhora representada no quadro a olhar-me de cima. Não era a expressão indeterminada, o seu meio sorriso, a captar a atenção da criança que eu era, mas sim as feições, penteado e roupas (que me pareciam pouco plausíveis) e as cores estranhas do quadro, habituado que estava a ver as pessoas representadas apenas (e mais “realisticamente”) em fotografias. Mais tarde, lembro-me do fascínio que me causou o padrão das fissuras da tinta deste quadro numa fotografia muito ampliada reproduzida num livro do meu pai. Pensava eu, na altura, que aquele efeito de “verniz estalado” tinha sido opção do pintor e que correspondia a uma fascinante e inimitável técnica de pintar. Que habilidade, paciência e destreza de mãos para fazer aquilo! Nesse livro fiquei também a saber que o quadro tinha sido pintado por Leonardo Da Vinci, um génio da renascença italiana que, para além de pintor, também tinha sido arquitecto, urbanista, engenheiro, escultor e cientista. Fiquei a saber que havia arte e artistas.
Passadas quase três décadas, vi já milhares de reproduções e variações artísticas e publicitárias da Mona Lisa, em livros, revistas, jornais, na televisão, no cinema e na internet. É, apesar disso, uma obra que me continua a intrigar, embora não pelos mesmos motivos que intrigaram a criança que através dela descobriu a existência da arte e dos artistas. O título do quadro nasceu certamente dos escritos de Vasari que referem que Leonardo terá elaborado para Francesco Del Giocondo o retrato de Mona (diminutivo de Madonna) Lisa, sua esposa, deixando-o incompleto após nele ter trabalhado quatro anos (provavelmente entre 1503 e 1507). Daí também a origem do nome que os italianos carinhosamente lhe dão, “La Gioconda”. O quadro consiste na representação de uma figura feminina, pintada posando para o pintor, com paisagem em fundo. A paisagem está mais baixa que a figura que se encontra numa varanda ou terraço sobrelevado. O quadro foi cortado dos dois lados – originalmente havia duas colunas a ladear a Madonna Lisa. A sua pose é, aparentemente, simples mas a um olhar mais atento percebemos que o pintor não usou a simetria, preferindo antes estabelecer um jogo de subtis torções. A composição é de princípio triangular, definindo o antebraço esquerdo a base do quadro. A mão direita pousa sobre a mão esquerda e as pregas das vestes iluminadas nos antebraços repetem o serpentear fluido dos cursos de água visíveis na paisagem em fundo e para os quais a diagonal do antebraço direito encaminha o olhar. Também o que parece ser um véu enrolado sobre o ombro esquerdo da figura tem continuidade nas formas da paisagem que, por sua vez, não possui carácter definitivo, estando à mercê dos cursos de água que a moldarão continuamente com o seu movimento caótico. A obra é, por isso, uma evocação do eterno fluir dos elementos que compõem o universo, posto em evidência simbolicamente em outras duas características fundamentais do quadro. A primeira, de carácter técnico, consiste na transição subtil das superfícies representadas na pintura, o célebre sfumato com o qual as cores veladas se sucedem, desvanecendo umas nas outras. A segunda, de profundidade psicológica, reside no suposto mistério que o sorriso da Mona Lisa oculta. Numa interpretação livre e subjectiva, poderia afirmar-se que o seu meio sorriso denuncia a partilha de um qualquer segredo com o pintor. A meu ver, aquela expressão vaga evidencia, acima de tudo, o fluir do tempo numa face cuja expressão é o já quase sorriso ou o prestes a deixar de sorrir, o lapso de tempo aprisionado através das tintas que terá dado aos contemporâneos de Leonardo, mais até do que a nós mesmos, a impressão de presenciarem, não o quadro, mas o modelo vivo.

Imaginário do Artista - Introdução

Presumo que embora única, a história da minha relação com a arte não difira, no modo como a organizo mentalmente, da de outras pessoas que, como eu, a amam e a ela se dedicam, seja como espectadores (desfrutadores) seja como artistas. Um imaginário artístico pessoal evolui, naturalmente, de descoberta em descoberta e, sendo imprescindível a tenacidade, a revelação destas descobertas corresponde a um processo longo que, ainda assim, se manifesta num repente através do espanto. De cada revelação, guardamos uma imagem mental que reunimos a outras anteriores como se se tratasse de uma colecção. Sempre que acrescentamos uma nova peça ao “catálogo” que é o nosso imaginário artístico é porque uma obra, objecto, pessoa, coisa, paisagem (i.e., não necessariamente uma obra de arte) com a qual nos relacionámos, abriu a nossa mente a uma nova (nova para nós) abordagem da arte. “Nova para nós” porque não me refiro apenas a novas abordagens da arte do ponto de vista da consciência colectiva dos guardiães da História da Arte (à sistematização académica), mas sim à consciência pessoal da arte, ou seja, o conjunto de textos que se seguirá a esta introdução é sobre algumas das peças que construíram e vão construindo o meu imaginário de artista. Se dele fazem parte, é porque alteraram o modo como entendia as coisas da arte, ou lhe acrescentaram algo. Podemos ser acompanhados por uma das “peças” que vêm a fazer parte do nosso imaginário durante muito tempo, sem que ela nos diga nada. Passados esses anos, descobrimo-la verdadeiramente. Antes esteve sempre lá, existia como alguém que conhecemos de vista e que cumprimentamos apenas por cortesia e boa educação. Havendo uma razão ou não, um dia conhecemo‑la melhor e passa a ser nossa companheira ainda que tantas coisas nela e em todos essas “peças” permaneçam obstinadamente tão obscuras em nós para todo o sempre.
Nuno de Matos DuartePonte de Sor/Lisboa, Fevereiro de 2006

2007/03/13

Breve Apontamento Sobre Percepção em Arte

Que estranho processo mental nos faz, perante um objecto, afirmar: “Isto é uma obra de arte!”? Por um lado, há certamente algo naquele objecto que nos induz ao reconhecimento, porque lhe identificamos determinados aspectos através da memória de aspectos semelhantes percepcionados em outros objectos. Só deste modo nos é possível dizer: “aquele objecto é (alguma coisa)”. Por outro lado, o objecto que identificamos como obra de arte incute-nos a impressão de estarmos perante algo que desconhecemos, coloca-nos perante um mistério que nos interpela e causa desconforto. Assim, há elementos que o caracterizam e que não compreendemos, ou que não conseguimos verbalizar (o objecto artístico envolve-nos numa poética). Deverá ser neste estranho jogo de confrontar reconhecimento e mistério que reside o prazer do usufruto da obra artística.

Na percepção da obra de arte, o reconhecimento pode corresponder a um conjunto de sinais ou convenções que nos habituámos a experimentar, os quais entendemos como sendo o seu suporte: a tela, o livro, o espaço museológico ou de exposição, a presença do instrumento que solta sons, etc. Este tipo de reconhecimento processa-se a um nível que se pode classificar de primário, tal como quando percebemos que estamos perante um rosto: «possui olhos, nariz e boca, portanto é um rosto». Neste nível primário de percepção (dura uma fracção de segundo?) não se diz «esta pessoa está triste» porque essa afirmação corresponde a um nível posterior (na fracção de segundo seguinte?). Por comparação, parece óbvio que o facto de estarmos perante uma tela coberta de tinta não significa necessariamente a vivência de uma experiência artística, ou a presença de uma obra de arte. É como se no acto de reconhecer estes sinais primários se operasse uma instantânea alteração da atitude mental do observador e este ficasse mais atento: «isto é um quadro e pode, portanto, tratar-se de arte». A função do reconhecimento a este nível é simplesmente a de “porta”, uma espécie de convite à percepção de outra realidade.

Pode-se falar também de reconhecimento em níveis mais complexos. Voltando à comparação com a observação de um rosto, pode nele ler-se tristeza ou qualquer outra emoção, quando olhos, nariz, boca e músculos faciais apresentam determinadas formas que, combinadas, induzem o observador a ler um “tipo” de emoção. Trata-se de “reviver”, isto é, comparar a leitura do instante presente com a memória de percepções anteriores e semelhantes, nas quais foi dado a perceber ao observador que àquela combinação correspondia uma emoção específica. Acontece o mesmo quando se olha, por exemplo, para uma tela – ultrapassado o reconhecimento do suporte, isto é, a consciência da sua materialidade como possibilidade para a presença da obra artística, reconhecem-se combinações no modo como a tinta se organiza. Essas combinações podem sugerir não só outras combinações de tinta em quadros observados anteriormente, mas também quaisquer outras coisas e factos que tenhamos presenciado nas nossas vidas. Mesmo assim, não é ainda na evidência de um reconhecimento primário e de um outro, ou outros, mais complexos que podemos afirmar que estamos perante uma obra de arte: «vejo algo a que chamo tela, emoldurada, na qual estão sugeridas, através da modelação de tintas, coisas que experimentei visualmente no passado e, como tal, recordo-me delas» (o facto de as tintas estarem ou não “bem modeladas” não é uma questão de pormenor, mas não pertence também a esta fase da explanação deste problema).

Conseguir reconhecer numa tela a representação a óleo de três cavalos a correr num prado, pouco ou nada diz sobre o facto de estarmos ou não na presença de uma obra de arte. Imaginemos – primeiro: uma pintura de Picasso com este tema; segundo: uma fotografia a cores feita por um amador também representando os mesmos três cavalos a correr no mesmo prado; comparemo-las. Imaginemos outra coisa – uma folha com frases soltas separadas por uma linha em branco, lemos as palavras e é uma receita de culinária; uma folha com frases soltas separadas por uma linha em branco, lemos as palavras e é um poema. A tradução verbal do que percepcionámos ao usufruir de uma obra de arte (o conjunto de palavras que escolhemos para ilustrar a percepção), embora possa descrever com maior ou menor precisão a sua configuração, pouco nos diz sobre ela, mal ultrapassando o que aqui se constatou acerca do reconhecimento. Wittgenstein em “O Livro Azul” afirmou que «(…) se quiséssemos uma representação da realidade, a própria frase seria essa representação (embora não fosse uma imagem por semelhança) (…)». Uma obra de arte é um objecto real que se percepciona e embora a verbalização de uma experiência sensorial seja uma representação da mesma será, contudo, um outro objecto também ele real. A tentativa de verbalizar a obra de arte é pouco relevante para a mesma. De pouco nos vale dizer ou escrever que «após um longo Si b4 agudo a trompete executou um harpejo no modo dórico, rápido, partindo do Dó3, etc.». A validade artística da obra assim descrita não se consegue aferir da frase que a descreve. Se disser o seguinte: «na galeria de arte estavam três ventoinhas a funcionar em cima de três cadeiras invertidas dependuradas do tecto», o resultado é o mesmo. Só levianamente se afirmaria que a primeira frase se refere a uma obra de arte e a segunda, não. Em rigor, o uso de uma linguagem especializada (ou não) na descrição da obra diz mais sobre a pessoa que a descreve do que sobre a obra de arte em si.

A dificuldade para o público de alguma arte moderna e contemporânea reside precisamente no facto de os artistas, na sua proposta de arte, terem dispensado a presença dos suportes tradicionais, isto é, o reconhecimento no nível classificado neste texto de “primário”, pois era (e ainda é?) através deles que o público entendia que estava perante uma obra de arte, ao ponto de confundir a arte com o seu suporte. O público confrontou-se com a dificuldade de verbalizar a obra de arte, porque quando falava de arte não era àquele tipo de objecto que costumava referir-se. Para o senso comum, arte será talvez a representação “bem feita” de um tema “familiar” num suporte “adequado”. Esta máxima compõe-se apenas de reconhecimento e será, para o senso comum, aplicável a qualquer disciplina artística. Nela reside um dos maiores equívocos em torno da arte – a obrigatoriedade de ser, à partida, classificável como fenómeno de gosto. Sobre o “gosto” em arte disse acertadamente Wittgenstein as seguintes frases: «(…)O gosto torna as coisas ACEITÁVEIS. (Por esta razão creio que o grande criador não tem qualquer necessidade de gosto; o seu filho vem ao mundo completamente formado)(…)»; «(…)Até mesmo o gosto mais refinado nada tem a ver com o poder criativo(…)»; «(…)O gosto pode ser encantador, mas não arrebatar(…)». Entender estas frases é arrumar este assunto.

Voltando à questão do reconhecimento em alguma arte moderna e contemporânea, pode afirmar-se que, para além da supressão do que aqui se chamou de reconhecimento primário, também houve períodos nas Histórias das Artes nos quais os artistas “baralharam” o reconhecimento nos níveis mais complexos. Consideremos as quebras radicais, às suas épocas, propostas por exemplo, por Shoenberg, Cage, Loos, Malevitch e Duchamp, não caindo no erro de julgar que estes artistas maiores só o são porque jogaram com o que descrevemos aqui como “reconhecimento”. Ao confrontarmo-nos com as suas obras há outros aspectos, para além daquele, que nos fazem afirmar: «Isto é uma obra de arte!». O conceito de ready-made introduzido por Duchamp joga com a supressão do que seria o reconhecimento primário de uma obra de arte à sua época. Em princípio, os contemporâneos de Duchamp nunca, ao olharem para o seu urinol, o relacionariam com arte por não se tratar de uma pedra trabalhada manualmente, nem de uma tela ou folha emoldurada contendo inscrições desenhadas ou pintadas. Não seria, no entanto, na casualidade de terem observado um urinol standard abandonado na rua, na posição exacta do da obra “Fontaine” (de 1917), que afirmariam que aquele objecto se tratava de uma obra de arte. Ao “jogar” com o reconhecimento primário Duchamp não o eliminou (embora aparentemente o tenha feito), apenas alargou as suas possibilidades. Continuou a ser necessária a “porta” para a arte, o convite à percepção de outra realidade. A obra “Fontaine” foi pensada para ser vista num espaço de exposição de arte e, para além disso, o título não poderia ser suprimido sem afectar a conformação da obra. Ainda hoje discutimos Duchamp através de livros de História de Arte, familiarizados com a observação de reproduções das suas obras. Apenas referenciada à arte se torna evidente que o urinol de Duchamp se trata, efectivamente, de arte, mas não há mal algum nisso porque toda a obra de arte se referencia, de uma maneira ou de outra, à arte.

Para considerar que um ou mais artefactos constituem uma obra de arte, costuma dizer-se que deve descobrir-se nele(s) a “intenção artística” de um ou mais indivíduos, que se manifestou na elaboração de algo que nos é revelado através dos sentidos. Mas faz sentido falar-se de “intenção artística”? Como a descobrimos ou identificamos se a intenção, a existir, existiria forçosamente apoiada na novidade e na originalidade, conduzindo os artistas para uma inevitável e insana obsessão com a consciência da cronologia da história de arte? Possuiria existência alheia à existência de espectadores? Existiria sempre no mundo composto somente pela obra e pelo seu criador?

Suponhamos que, passados dez anos, revejo alguém que não via desde então e que, ao revê-lo, profiro «Há quanto tempo não te via?! Estás diferente!». Possuo, como todas as pessoas mentalmente sãs, a capacidade de reconhecer alguém através do seu rosto, apesar de este se ter modificado. «Nunca tinha visto esta pessoa com esta conformação exacta de rosto, mas é através dela que a reconheço». Isto significa apenas que há particularidades e relações entre os elementos que o compõem que se mantiveram, de algum modo, para o poder reconhecer. Na percepção da arte as coisas processam-se muitas vezes de maneira semelhante. Exclamo «Ah! Isto é Beethoven!» ao ouvir uma peça musical que nunca tinha ouvido antes. É certo que quando o afecto pela obra de um artista é muito, a sensação do reencontro inesperado e nestas circunstâncias me deixa tão feliz como se do reencontro inesperado com um amigo se tratasse. Deste exemplo podem retirar-se algumas pistas sobre aquilo a que costuma chamar-se “intenção artística” (expressão tão do agrado dos defensores acérrimos da chamada “arte conceptual”). A meu ver esta expressão é absurda. Quem a usa diz, por vezes, que a “intenção artística” se reflecte em algo relativamente forte que permite, usufruindo da obra, reconhecer o seu autor, sem que ninguém diga antes «esta obra é de fulano tal». A questão que aqui se coloca é: aquilo que me faz reconhecer Beethoven num conjunto de sons tem alguma coisa a ver com um “programa artístico” pré-estabelecido pelo autor? Seguramente não. Refere Gualter Cunha na sua introdução ao poema The Waste Land de T. S. Eliot (A Terra Devastada, T. S. Eliot, Relógio d’Água, Agosto de 1999) que quando “(…) o interrogaram, numa entrevista, sobre as suas intenções em The Waste Land, Eliot, que para além de tudo foi um dos mais rigorosos e influentes críticos literários do seu tempo, respondeu: «Eu sei lá o que é que intenção quer dizer! Uma pessoa quer é ver-se livre de alguma coisa que lhe pesa no peito. Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá.» (…)” Picasso afirmou o mesmo mas de outra forma: «(…) Se sabemos exactamente o que vamos fazer, para quê fazê-lo? Se sabemos, deixa de ter interesse. Mais vale fazer outra coisa! (…)”

A obra de arte é uma entidade autónoma da ideia de obra que o artista tinha e que lhe serviu de base para a formar. É também diferente da ideia de obra que se forma na mente do espectador. O artista, ao começar a obra, parte de algo que é dela diferente, porque a existência de uma ou mais ideias daquela obra se processa apenas a nível mental, tratando-se de um acto evanescente que se vai avolumando e esvaziando através da aceitação e rejeição de hipóteses (processo próprio da emergência da obra de arte). A “intenção artística”, a existir, seria uma impressão, conjunto de pensamentos vagos que povoam o cérebro do artista e que, apenas quando terminada a obra, se poderia revelar na plenitude do seu sentido. Ao revelar-se deixaria de ser, dando lugar a outra coisa que é, dela, diferente: a obra de arte.

Entende-se neste texto “intenção” por “aquilo que se pretende fazer, propósito, plano”. Quando reconheço Beethoven no conjunto de sons que formam uma sonata para piano é porque me habituei (familiarizei) à forma como Beethoven os organiza, isto é, tem modos próprios de o fazer, modos que definem o carácter original das obras que compôs. Antes de compor o conjunto de notas que forma uma peça acabada, Beethoven tinha seguramente um “propósito”, tinha “algo que pretendia fazer”; mas a este nível não pretenderia ele, tão-somente, compor uma sonata? Não é a este vago desejo de cumprir um requisito ou uma encomenda que se pode chamar “intenção artística”. Lancemos uma hipótese em infinitas: a “intenção artística” de um compositor seria desenvolver a sua obsessão com um curto segmento de melodia que queria ouvir transformado em “monumento sonoro”, porque pressente nesse segmento a capacidade de o gerar. O propósito do artista seria percorrer o caminho que vai inventando e descobrindo à medida que avança, na tentativa de resolver de forma “artisticamente satisfatória” o problema que colocou a si próprio, ou seja, a possibilidade de aquele segmento de melodia, associado a sons que ele ainda desconhece, gerar um “monumento sonoro”. O que se pretende realçar com um exemplo deste tipo é a dificuldade que existe em conciliar as palavras “intenção” e “artístico”, porque a arte está mais próxima do homem que descobre a forma do que do homem que põe em prática a forma. Não é correcto falar-se de “intenção artística”, ou de “projecto artístico” porque a obra de arte é um objecto que, para o ser, possui de algum modo em si um cunho que respira vontade de descoberta (progressiva) da forma. O projecto terminado de obra de arte é já, do ponto de vista do artista, a própria obra de arte. A “intenção artística” só existiria, bem definida, quando o artista concluísse o objecto que constitui a obra de arte mas, nesse mesmo instante, deixaríamos de lhe poder chamar “intenção artística” porque lhe chamaríamos “obra de arte”. A obra de arte é o objecto que prevalece perante todos os pensamentos incertos que ela própria desperta e nunca transparece dela nenhuma “intenção artística” porque a arte não possui “projecto de execução” do seu artistismo.

O que a obra de arte tem de possuir para o ser é um “artistismo”, ou seja, um “carácter” (à falta de melhor termo) que é próprio das obras de arte. O termo “artistismo” não é um apriorismo, ao passo que a expressão “intenção artística” é. O desafio para o espectador da obra de arte é a descoberta do “artistismo” do objecto que percepciona e não a descoberta da “intenção” do artista que, em termos artísticos, nunca existe. Esta argumentação não rejeita uma ideia de arte conceptual, embora se demarque claramente de um certo tipo de discurso sobre as artes no qual se usa a expressão “conceptualismo” como correspondência directa entre composição de lógicas verbais e composição dos objectos que formam a obra de arte, tomando a primeira por geradora da segunda (como se uma explicação a priori, simplista e única tornasse a obra mais “forte”). Toda a obra de arte é, por definição, conceptual, tal como quase todas as actividades humanas o são. Só através de conceitos se fazem obras de arte, mas isso não significa que estas necessitem de recorrer ao discurso falado e/ou escrito para serem “conceptuais” ou para serem arte. As palavras traduzem e/ou identificam conceitos; estes são representações mentais que edificam a complexa teia do raciocínio. Há conceitos que não são traduzíveis por palavras. Nesta categoria podemos incluir os conceitos que edificam as “lógicas artísticas”, que constituem uma espécie de repertório de “imagens mentais” que os seres humanos vão criando e coleccionando ao longo das suas vidas, transmitindo algumas e perdendo outras na sucessão das gerações.

Ponte de Sor, 2003/2004