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2007/05/01

Imaginário do Artista - 10 - Cabeça de Medusa





















Michelangelo Merisi, detto il Caravaggio
“Cabeça de Medusa”
60x55cm
Galleria degli Uffizi, Florença


A LENDA:
Das três temíveis Górgonas, irmãs filhas das divindades marinhas Fórcis e Ceto, duas eram imortais, Eusteno e Euríale. A terceira, Medusa, era mortal. Outrora tinha sido belíssima e particularmente belos teriam sido os seus cabelos que tanto atraíam os olhares. O esplendor da sua figura seduziu Poseidon que a violou no templo de Minerva. A profanação do templo levou Atena a punir Medusa, transformando os seus belos cabelos num emaranhado de serpentes vivas e amaldiçoando o seu olhar com o poder da morte pela petrificação. Medusa tornou-se evocação de medo, de horror, da implacabilidade da morte.
Perseu era filho de Zeus e Danae. O Rei de Acrisius, pai de Danae, temendo a profecia que anunciava a sua morte às mãos do neto, abandonou Perseu e sua mãe no mar. Os dois vaguearam até serem finalmente recolhidos pelo Rei de Serifo, Polidectes, que acabou mais tarde por se apaixonar por Danae. Incapaz de se aproximar dela porque Perseu era irredutível na protecção à mãe, Polidectes decidiu livrar-se do filho da amada, incumbindo-o de uma impossível demanda – decapitar Medusa e trazer a sua cabeça. Escondido por detrás de um escudo espelhado e munido de outros objectos mágicos, Perseu protegeu-se do olhar terrífico e mortal ao mesmo tempo que o devolvia em reflexo a Medusa, decapitando-a no exacto momento em que ela contemplou o horror da sua própria figura, o horror da sua própria morte.
Face à lenda, Medusa representa o absolutamente inacessível, dado não ser possível vê-la sem morrer. Encarar Medusa seria ver a própria morte e morrer nesse exacto instante, quando o próprio corpo se fixa eternizando o seu esgar de espanto e horror em pedra, para sempre.

A OBRA:
A “Cabeça de Medusa” de Michelangelo Merisi detto il Caravaggio, transporta a representação escultural e pictórica de cenas mitológicas (ou bíblicas) a um plano nada comum. A composição da obra é económica, clara, reduzindo formalmente o instante decisivo da narrativa aos elementos estritamente necessários. Inquietante e muito densa nos recursos artísticos e no jogo psicológico que propõe, “Cabeça de Medusa” não é apenas uma pintura, mas também um objecto, o objecto chave para o qual todos os acontecimentos narrados pela lenda confluem, o objecto chave que soluciona a trama e a faz explodir de significado: a obra é o escudo espelhado, côncavo, no qual Medusa vê a sua própria imagem; é arte directa, despida de adereços, adornos, anexos e redundâncias. A obra é o escudo espelhado a reflectir Medusa observando a própria morte no exacto instante da sua ocorrência. O que ela vê é o próprio olhar horrorizado ao contemplar-se a si mesma, ao ver-se petrificar. Vê, tal como nós, o seu estertor de morte; vê, tal como nós, a sua cabeça solta esguichando sangue ao golpe da espada de Perseu. A imagem da própria cabeça é a imagem cristalizada do momento da própria morte na superfície côncava do escudo (é, à sua maneira, uma fotografia com tudo o que de morte a fotografia encerra, pois capta um momento único e irrepetível no espaço e no tempo). Mas a genialidade do jogo psicológico deste objecto-pintura reside num factor ainda mais perturbante – a representação do reflexo de Medusa no escudo é um auto-retrato de Caravaggio travestido de Medusa. A representação que o artista nos dá a ver de si próprio é a representação máxima do horror, da definitiva e absoluta vertigem do momento da morte. Representou no espelho, no escudo côncavo de Perseu, a imagem que viu de si no espelho real imaginando-se a morrer como Medusa. Esta obra é, por isso, um duplo espelho, real e mitológico. Esta duplicidade atravessa aliás toda a obra do artista que sempre usou para as suas composições pictóricas pessoas comuns, o “homem da rua” como modelo das personagens bíblicas e mitológicas. E olhando os seus quadros nunca as personagens nos surgem como figuras idealizadas e perfeitas, surgindo-nos antes como as pessoas comuns que foram, sob uma representação de luz também ela realista, modelada por uma pincelada próxima da absoluta perfeição técnica. Não é inédita em Caravaggio a auto-representação como decapitado. Em “David com a Cabeça de Golias” o jovem David agarra pelos cabelos a cabeça solta do corpo de um Golias cujas feições são as do próprio Caravaggio. David exibe-a, não com uma expressão triunfal ou de raiva, mas manifestando alguma compaixão pelo degolado. Alguns vêem nestas auto representações de Caravaggio manifestação de amargura derivada das atribulações de uma vida errante, canalha, que conheceu de perto o horror da morte, da dor e do confronto físico violento. Pela minha parte, acrescento a essa leitura outra lição importante que constitui um legado artístico não menos trágico: a representação de espelho que o auto-retrato do artista é, será sempre também uma representação do próprio artista a ver como os outros o verão após a sua morte.

2007/03/25

Imaginário do Artista - 8 - Três Palavras Obscuras
































ACÇÃO, em arte, é o movimento criativo organizador de elementos que são parte integrante de um MEIO, fixando-os formalmente num SUPORTE. O modo de organizar aqueles elementos pode, por vezes, em vez de em forma estável, manifestar-se numa forma instável. No entanto, essa instabilidade respeitará sempre determinados parâmetros, sendo esse seu particular modo de se manifestar a razão de ser da ACÇÃO. Pode dizer-se que a acção define o “género artístico”.
MEIO, em arte, é o conjunto de elementos que, ao concretizar-se em organização que origina forma, estabelece a comunicação entre o artista e o fruidor ou, noutro plano, é aquilo que possibilita a existência de ACÇÃO sobre o SUPORTE.
SUPORTE, em arte, é o lugar, superfície ou matéria de sustentação no qual se inscreve a ACÇÃO que origina a obra de arte.

A obra de arte, em função destas definições sumárias, integra em si-mesma ACÇÃO, MEIO e SUPORTE, bem como artista e fruidor, nem sempre sendo lícita a distinção e identificação destes termos em presença da obra.

Dizemos: pintar é a acção; as tintas coloridas e os pincéis, espátulas, etc. são o meio; a tela ou a tábua são o suporte.
Dizemos: esculpir (lavrar) é a acção; o cinzel é o meio; a pedra ou a madeira são o suporte.
Dizemos: o projecto de arquitectura (vocacionado para a construção) é a acção; os vazios, os cheios e a sua natureza são o meio; o meio ambiente é o suporte.
Dizemos: compor é a acção; os sons e os silêncios são o meio; o tempo e o espaço são o suporte.
Dizemos: fotografar (como termo lato que inclui também a pós produção da imagem) é a acção; a incidência da luz nas coisas e seres é o meio; o filme, o papel ou o ecrã são o suporte.
Dizemos: dançar é a acção; o corpo humano em movimento é o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: performance é a acção; o corpo humano e objectos de natureza diversa são o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: body art é a acção; a própria arte, os seus dogmas transfigurados simbolicamente nos objectos que inscrevem, são o meio; o corpo humano é o suporte.
Dizemos: escrever é a acção; as palavras, frases, parágrafos, etc., são o meio; qual será efectivamente o suporte da escrita? – embora nele se apoie a caneta, o papel não será seguramente; mais correcta é a afirmação de que é a língua o suporte da escrita; em última instância é o cérebro humano.

Beuys afirmou: «pensar é esculpir», isto é, pensar (através da arte) é a acção, a própria arte é o meio e o cérebro humano é o suporte cuja morfologia (mesmo que a micro escala) efectivamente muda.
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Ilustração: Nuno de Matos Duarte, “autoR”, 2004, Tinta-da-china s/ 30 folhas de papel A4, 178,2 x 105 cm

Imaginário do Artista – 5 – Gerhard Richter e a Pintura


















































“Sem Título (570-4)”, 1984
Óleo sobre tela
65x80cm

“Veneza – Escada com Isa (586-3)”, 1985
Óleo s/ tela
50x70cm

“Grupo de Árvores (628-1)”, 1987
Óleo s/ tela
72x102cm



Tenho o hábito de passear distraidamente os olhos por livros ilustrados. Página após página o olhar espreguiça-se nas imagens que se sucedem, uma, outra, mais outra e mais outra e por aí fora. Períodos há em que revisito frequentemente um mesmo livro ilustrado com este meu olhar preguiçoso e o desfilar das imagens adormece-me, vou deixando de pensar em coisas – letargia cerebral que muito me apraz. Qualquer livro com reproduções de obras de arte merece a minha preferência nesta actividade um tanto absurda, que consiste, no fundo, em estar perante mundos complexos que desfilam sem lhes dar, naquele momento, nenhuma importância. Apenas os vejo, constato que existem e que estão ali expectantes nas páginas dos livros, para que um dia possa mergulhar e embrenhar-me neles.
Houve um período em que três reproduções de outras tantas obras de Gerhard Richter quebravam teimosamente a indolência das deambulações errantes do meu olhar pelas imagens de um livro sobre arte contemporânea. O livro ganhou jeitos e vícios de forma, passando a abrir-se por si só naquelas páginas. Àquela data Gerhard Richter não tinha merecido a minha atenção como artista. Só ao dar-me conta de que aquelas imagens (por sinal bastante diferentes entre si) me interpelavam de algum modo, mesmo sem que sobre elas estabelecesse qualquer raciocínio, é que disse para mim mesmo: vamos lá vencer a preguiça e ver o que estou a ver, vendo, depois, quem é que fez isto e que mais fez ele que possa ser visto.
E que via eu?
Numa das pinturas, sobre um fundo etéreo e profundo, arrastos espessos de cor a espátula e pincel que, ora sobressaindo com violência, ora definindo planos coloridos que mergulhavam no fundo, criavam o espantoso espaço e tempo de um mundo fantástico. Era uma pintura cujos princípios reconheci como sendo semelhantes aos que pautavam à época as minhas próprias tentativas de pintar e que consistiam, resumidamente, na capacidade de a arte aparentar a sua própria génese como mundo, ao mostrar a representação de um espaço impossível que se forma perante os nossos olhos. A minha descoberta pessoal das pinturas abstractas de Richter afectou decisivamente o rumo da arte que procurava fazer na altura porque a minha reacção à mesma foi a de me libertar daquele modo de pensar a génese da obra de pintura, não fosse ela vir a ser confundida com uma imitação rasca da obra de um pintor enorme.
Na segunda pintura nada se assemelha à primeira, excepto a técnica (pintura a óleo sobre tela) e o autor. É desde logo notável constatarmos que o autor das duas pinturas é o mesmo. Mas, se atendermos ainda ao facto de os dois quadros não corresponderem a duas “fases” diferentes da carreira do artista, cronologicamente separadas, mas antes a duas abordagens que se desenvolveram a par, mais notável se torna. Esta segunda imagem, a meu ver transbordante de poesia, possui a aparente banalidade da fotografia de férias, do certeiro slogan da Kodak «para mais tarde recordar». De facto, Richter utiliza fotografias suas, pessoais, como tema dos seus quadros, ou nas suas próprias palavras, usa a pintura como veículo para as fotografias. Pensar sobre esta imagem colocou-me perante a seguinte dúvida: porque consideramos banais as fotografias íntimas, pessoais ou familiares? Por se terem vulgarizado? Pela sua falta de requinte técnico e de composição? Pela sua objectividade? Se formos ao fundo da questão concluiremos que de banal nada têm os valores e temas subjacentes a elas, porque este género de fotografia despe-se de toda a retórica (ou nem sequer a chega a conhecer) para se concentrar nos afectos. Fotografamos aqueles que amamos, os locais onde estivemos e as pessoas com quem estivemos simplesmente para os registar e fazer perdurar na memória através de uma imagem. O valor da imagem não reside em si mesmo, mas sim no amor genuíno que nutrimos pelos objectos e seres nela representados. Tratam-se de imagens muito subjectivas cujo tratamento é o mais objectivo possível. Tornam-se universais porque todos encontram nelas os seus próprios valores. Todos sentem necessidade de fazer este tipo de imagens porque a “democratização” da técnica fotográfica, felizmente, assim o permite. Se há tantos disparates que subitamente parecem ganhar valor apenas porque alguém com acesso ao “meio artístico” os decidiu introduzir na “esfera da arte”, porque motivo seria incorrecto trazer à arte imagens tão genuínas e poéticas, que evocam o nosso passado, aquilo que somos e os objectos, seres e lugares que são essenciais às nossas vidas? Richter fê-lo através da pintura, o que dificultou a tarefa da análise crítica e académica forçados que foram a confrontarem-se com os jogos de linguagens entre pintura e fotografia. Nan Goldin, por exemplo, fê-lo de modo mais directo através da própria fotografia.
Contudo, esta segunda pintura apresenta-nos mais do que o snapshot circunstancial. Não se trata de uma imagem qualquer. O título fornece-nos três elementos-chave: Veneza, a escada e Isa. Ao lermos o quadro da esquerda para a direita verificamos que o meio do quadro é uma fronteira clara: do lado esquerdo a superfície da tela é ocupada por um espaço relvado e árvores protectoras que dão abrigo e sombra; do lado direito é ocupada pela vastidão nublada e azul das águas calmas da lagoa. Ao lermos o quadro de cima para baixo vemos que o meio do quadro é marcado por um caminho de terra batida que, partindo de uma discreta mas misteriosa sombra à esquerda, encaminhou Isa ao patamar superior da escada que desce até à água, mas também até ao patamar mais baixo e próximo do observador do quadro. A atmosfera é extraordinariamente calma, lendo-a eu como uma paz melancólica ao observar a postura introspectiva de cabisbaixo desalento de Isa perante a mórbida lagoa. Isa deixou atrás de si, largado no chão, aquilo que parece ser uma peça de roupa (um véu?). Vacilando entre uma e a outra metade do quadro, o véu (?) posiciona-se na fronteira entre o verde protector e o vazio da lagoa tendendo, no entanto, claramente para o lado da lagoa. Isa terá feito uma escolha? Ao olhar este magnifico quadro não posso deixar de me recordar do destino que os protagonistas dos livros “Morte em Veneza” e “Na Outra Margem entre as Árvores”, respectivamente de Thomas Mann e Ernest Hemingway, foram encontrar em Veneza: a morte.
Da terceira pintura diríamos seguramente tratar-se da coexistência dos dois tipos de quadros atrás descritos, na qual o abstracto mundo de autonomia pictórica se sobrepõe a um outro, figurativo, que revela um profundo e codificado universo interior. Mais do que simplesmente sobrepor-se, o abstracto vai ao encontro do figurativo – aqueles violentos arrastos de tinta, contrapondo-se em textura à velada superfície da representação de uma paisagem com árvores, faz eco das suas tonalidades. É como se o pintor passasse com uma espátula larga pelos restos de tinta da paleta que compôs a pintura figurativa e borrasse, literalmente, essa mesma pintura com os próprios restos que são também, no fundo, a matéria bruta de que é feita – o “Ceci n’est pas une pipe” de René Magrite contado de outra maneira?

2007/03/23

Imaginário do Artista - 4 - Defeitos e Virtudes do Conceito de Série (2.ª Parte)





























Claude Monet

Da esquerda para a direita e de cima para baixo, quatro quadros da mais extensa série “A Catedral de Rouen”:

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain na Aurora”, 1894
Óleo s/ tela
106x74cm
Boston, Museum of Fine Arts
The Tompkins Collection

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Sol Matinal”, 1894
Óleo s/ tela
91x63cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain em Pleno Sol. Harmonia azul”, 1894
Óleo s/ tela
107x73cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Tempo Cinzento. Harmonia Cinzenta”,1894
Óleo s/ tela
100x65cm
Paris, Musée d’Orsay



Vimos no texto anterior que se tornou comummente aceite como arte o uso de um modus operandi sistemático e repetitivo sobre um determinado tema quando a obra se apresenta como conjunto sequencial de peças, como “série”. Torna-se por vezes difícil de discernir a honestidade da atitude serial, isto é, se esta irá, de facto, para além do artifício que tira partido da preguiça do espectador, fazendo-o aceitar um conjunto de objectos ocos mas semelhantes como notáveis obras de arte. A repetição que se apresenta como possibilidade até ao infinito (através de sucessivas variações) de exploração de uma mesma ideia, tema ou objecto, parece ofuscar o seu valor intrínseco, convencendo-nos de estarmos perante consistência e coerência artística mesmo quando ambas não estão presentes. A repetição e a insistência obstinada num mesmo método ou tema não torna o artista necessariamente coerente, porque em última instância a coerência apenas pode provir da verdade e esta do ser genuíno, nunca do charlatão. O artista coerente, ou melhor, o artista, é aquele que na sua inabalável posição de verdade e índole genuína transforma esse seu modo de ser em obras que, por esse motivo, são únicas e irrepetíveis. Tudo o resto está, a meu ver, fora da esfera da arte. O sucesso e excessivo entusiasmo por obras que se apresentam como série deve-se hoje, talvez, à facilidade de identificar, num repente, artistas através de uma imagem/reprodução observada nos meios de comunicação. Deste modo, artistas, obras e estilos organizam-se e catalogam-se logo no momento da sua génese, facilitando os meios de divulgação, publicidade e crítica. Método inegavelmente prático mas, ainda assim, trata aspectos que pouco deveriam importar ao artista.
Se recuarmos até às primeiras tentativas conscientes do uso da série em arte, veremos que nem sempre a ênfase foi entregue ao “como” e que, pelo contrário, a experimentação do “como” provinha do “o quê”. Nos vários quadros que compõem a série da Catedral de Rouen, Claude Monet repete de quadro para quadro a estrutura da composição, fazendo variar a atmosfera e o carácter da luz que sobre ela incide. Observa a fachada do mesmo local mas apresenta dela visões separadas no tempo, fixando-se nas notáveis características escultóricas do objecto. Do indagar à volta da complexidade visual que a ideia de escultura encerra em si mesma, do projectar dessa indagação na fachada da Catedral de Rouen, Monet fez emergir o “método” da série. Opta por representar a fachada parcialmente, ou seja, em nenhum momento pretende apreender ou decifrar do rendilhado de pedra os princípios da geometria latente do edifício. A comunhão que o artista efectua com o objecto que constitui a génese da sua proposta de arte é antes o fascínio pela qualidade da luz que o modela (como se revela a luz no objecto, como aparece o objecto por ela revelado). A transitoriedade da luz, a sua inconstância, escapa-lhe a cada momento. Ao apresentar a multiplicidade das “aparições” do objecto segundo o carácter da luz que o banha, o artista embrenha-se na impossibilidade de aprisionar a verdade da sua forma. A chave para ultrapassar essa impossibilidade descobriu-a Monet mais na invenção da luz, do que na impressão da luz, ao contrário do que poderíamos supor dado tratar-se o autor daquele que definiu artisticamente o género impressionista.

2007/03/16

Imaginário do Artista - 1 - Mona Lisa




















Leonardo Da Vinci
“Mona Lisa”
(ou “La Gioconda”)
Óleo s/ painel de madeira
77x53cm
Museu do Louvre, Paris

Curiosamente, aquela que é considerada a pintura mais famosa do mundo é também a primeira que me lembro de ver e a que me fez tomar consciência da existência da arte, embora até hoje nunca a tenha visto senão em reproduções. Ainda não frequentava o ensino primário quando me familiarizei com aquela imagem. Havia uma reprodução da Mona Lisa emoldurada e pendurada na parede da salinha da casa da minha vizinha do 2.º andar do prédio onde morava e com cujos filhos ia brincar regularmente. O quadro estava pendurado um pouco alto numa parede que recebia sol de nascente e eu via aquela estranha senhora representada no quadro a olhar-me de cima. Não era a expressão indeterminada, o seu meio sorriso, a captar a atenção da criança que eu era, mas sim as feições, penteado e roupas (que me pareciam pouco plausíveis) e as cores estranhas do quadro, habituado que estava a ver as pessoas representadas apenas (e mais “realisticamente”) em fotografias. Mais tarde, lembro-me do fascínio que me causou o padrão das fissuras da tinta deste quadro numa fotografia muito ampliada reproduzida num livro do meu pai. Pensava eu, na altura, que aquele efeito de “verniz estalado” tinha sido opção do pintor e que correspondia a uma fascinante e inimitável técnica de pintar. Que habilidade, paciência e destreza de mãos para fazer aquilo! Nesse livro fiquei também a saber que o quadro tinha sido pintado por Leonardo Da Vinci, um génio da renascença italiana que, para além de pintor, também tinha sido arquitecto, urbanista, engenheiro, escultor e cientista. Fiquei a saber que havia arte e artistas.
Passadas quase três décadas, vi já milhares de reproduções e variações artísticas e publicitárias da Mona Lisa, em livros, revistas, jornais, na televisão, no cinema e na internet. É, apesar disso, uma obra que me continua a intrigar, embora não pelos mesmos motivos que intrigaram a criança que através dela descobriu a existência da arte e dos artistas. O título do quadro nasceu certamente dos escritos de Vasari que referem que Leonardo terá elaborado para Francesco Del Giocondo o retrato de Mona (diminutivo de Madonna) Lisa, sua esposa, deixando-o incompleto após nele ter trabalhado quatro anos (provavelmente entre 1503 e 1507). Daí também a origem do nome que os italianos carinhosamente lhe dão, “La Gioconda”. O quadro consiste na representação de uma figura feminina, pintada posando para o pintor, com paisagem em fundo. A paisagem está mais baixa que a figura que se encontra numa varanda ou terraço sobrelevado. O quadro foi cortado dos dois lados – originalmente havia duas colunas a ladear a Madonna Lisa. A sua pose é, aparentemente, simples mas a um olhar mais atento percebemos que o pintor não usou a simetria, preferindo antes estabelecer um jogo de subtis torções. A composição é de princípio triangular, definindo o antebraço esquerdo a base do quadro. A mão direita pousa sobre a mão esquerda e as pregas das vestes iluminadas nos antebraços repetem o serpentear fluido dos cursos de água visíveis na paisagem em fundo e para os quais a diagonal do antebraço direito encaminha o olhar. Também o que parece ser um véu enrolado sobre o ombro esquerdo da figura tem continuidade nas formas da paisagem que, por sua vez, não possui carácter definitivo, estando à mercê dos cursos de água que a moldarão continuamente com o seu movimento caótico. A obra é, por isso, uma evocação do eterno fluir dos elementos que compõem o universo, posto em evidência simbolicamente em outras duas características fundamentais do quadro. A primeira, de carácter técnico, consiste na transição subtil das superfícies representadas na pintura, o célebre sfumato com o qual as cores veladas se sucedem, desvanecendo umas nas outras. A segunda, de profundidade psicológica, reside no suposto mistério que o sorriso da Mona Lisa oculta. Numa interpretação livre e subjectiva, poderia afirmar-se que o seu meio sorriso denuncia a partilha de um qualquer segredo com o pintor. A meu ver, aquela expressão vaga evidencia, acima de tudo, o fluir do tempo numa face cuja expressão é o já quase sorriso ou o prestes a deixar de sorrir, o lapso de tempo aprisionado através das tintas que terá dado aos contemporâneos de Leonardo, mais até do que a nós mesmos, a impressão de presenciarem, não o quadro, mas o modelo vivo.