2007/03/25

Imaginário do Artista – 5 – Gerhard Richter e a Pintura


















































“Sem Título (570-4)”, 1984
Óleo sobre tela
65x80cm

“Veneza – Escada com Isa (586-3)”, 1985
Óleo s/ tela
50x70cm

“Grupo de Árvores (628-1)”, 1987
Óleo s/ tela
72x102cm



Tenho o hábito de passear distraidamente os olhos por livros ilustrados. Página após página o olhar espreguiça-se nas imagens que se sucedem, uma, outra, mais outra e mais outra e por aí fora. Períodos há em que revisito frequentemente um mesmo livro ilustrado com este meu olhar preguiçoso e o desfilar das imagens adormece-me, vou deixando de pensar em coisas – letargia cerebral que muito me apraz. Qualquer livro com reproduções de obras de arte merece a minha preferência nesta actividade um tanto absurda, que consiste, no fundo, em estar perante mundos complexos que desfilam sem lhes dar, naquele momento, nenhuma importância. Apenas os vejo, constato que existem e que estão ali expectantes nas páginas dos livros, para que um dia possa mergulhar e embrenhar-me neles.
Houve um período em que três reproduções de outras tantas obras de Gerhard Richter quebravam teimosamente a indolência das deambulações errantes do meu olhar pelas imagens de um livro sobre arte contemporânea. O livro ganhou jeitos e vícios de forma, passando a abrir-se por si só naquelas páginas. Àquela data Gerhard Richter não tinha merecido a minha atenção como artista. Só ao dar-me conta de que aquelas imagens (por sinal bastante diferentes entre si) me interpelavam de algum modo, mesmo sem que sobre elas estabelecesse qualquer raciocínio, é que disse para mim mesmo: vamos lá vencer a preguiça e ver o que estou a ver, vendo, depois, quem é que fez isto e que mais fez ele que possa ser visto.
E que via eu?
Numa das pinturas, sobre um fundo etéreo e profundo, arrastos espessos de cor a espátula e pincel que, ora sobressaindo com violência, ora definindo planos coloridos que mergulhavam no fundo, criavam o espantoso espaço e tempo de um mundo fantástico. Era uma pintura cujos princípios reconheci como sendo semelhantes aos que pautavam à época as minhas próprias tentativas de pintar e que consistiam, resumidamente, na capacidade de a arte aparentar a sua própria génese como mundo, ao mostrar a representação de um espaço impossível que se forma perante os nossos olhos. A minha descoberta pessoal das pinturas abstractas de Richter afectou decisivamente o rumo da arte que procurava fazer na altura porque a minha reacção à mesma foi a de me libertar daquele modo de pensar a génese da obra de pintura, não fosse ela vir a ser confundida com uma imitação rasca da obra de um pintor enorme.
Na segunda pintura nada se assemelha à primeira, excepto a técnica (pintura a óleo sobre tela) e o autor. É desde logo notável constatarmos que o autor das duas pinturas é o mesmo. Mas, se atendermos ainda ao facto de os dois quadros não corresponderem a duas “fases” diferentes da carreira do artista, cronologicamente separadas, mas antes a duas abordagens que se desenvolveram a par, mais notável se torna. Esta segunda imagem, a meu ver transbordante de poesia, possui a aparente banalidade da fotografia de férias, do certeiro slogan da Kodak «para mais tarde recordar». De facto, Richter utiliza fotografias suas, pessoais, como tema dos seus quadros, ou nas suas próprias palavras, usa a pintura como veículo para as fotografias. Pensar sobre esta imagem colocou-me perante a seguinte dúvida: porque consideramos banais as fotografias íntimas, pessoais ou familiares? Por se terem vulgarizado? Pela sua falta de requinte técnico e de composição? Pela sua objectividade? Se formos ao fundo da questão concluiremos que de banal nada têm os valores e temas subjacentes a elas, porque este género de fotografia despe-se de toda a retórica (ou nem sequer a chega a conhecer) para se concentrar nos afectos. Fotografamos aqueles que amamos, os locais onde estivemos e as pessoas com quem estivemos simplesmente para os registar e fazer perdurar na memória através de uma imagem. O valor da imagem não reside em si mesmo, mas sim no amor genuíno que nutrimos pelos objectos e seres nela representados. Tratam-se de imagens muito subjectivas cujo tratamento é o mais objectivo possível. Tornam-se universais porque todos encontram nelas os seus próprios valores. Todos sentem necessidade de fazer este tipo de imagens porque a “democratização” da técnica fotográfica, felizmente, assim o permite. Se há tantos disparates que subitamente parecem ganhar valor apenas porque alguém com acesso ao “meio artístico” os decidiu introduzir na “esfera da arte”, porque motivo seria incorrecto trazer à arte imagens tão genuínas e poéticas, que evocam o nosso passado, aquilo que somos e os objectos, seres e lugares que são essenciais às nossas vidas? Richter fê-lo através da pintura, o que dificultou a tarefa da análise crítica e académica forçados que foram a confrontarem-se com os jogos de linguagens entre pintura e fotografia. Nan Goldin, por exemplo, fê-lo de modo mais directo através da própria fotografia.
Contudo, esta segunda pintura apresenta-nos mais do que o snapshot circunstancial. Não se trata de uma imagem qualquer. O título fornece-nos três elementos-chave: Veneza, a escada e Isa. Ao lermos o quadro da esquerda para a direita verificamos que o meio do quadro é uma fronteira clara: do lado esquerdo a superfície da tela é ocupada por um espaço relvado e árvores protectoras que dão abrigo e sombra; do lado direito é ocupada pela vastidão nublada e azul das águas calmas da lagoa. Ao lermos o quadro de cima para baixo vemos que o meio do quadro é marcado por um caminho de terra batida que, partindo de uma discreta mas misteriosa sombra à esquerda, encaminhou Isa ao patamar superior da escada que desce até à água, mas também até ao patamar mais baixo e próximo do observador do quadro. A atmosfera é extraordinariamente calma, lendo-a eu como uma paz melancólica ao observar a postura introspectiva de cabisbaixo desalento de Isa perante a mórbida lagoa. Isa deixou atrás de si, largado no chão, aquilo que parece ser uma peça de roupa (um véu?). Vacilando entre uma e a outra metade do quadro, o véu (?) posiciona-se na fronteira entre o verde protector e o vazio da lagoa tendendo, no entanto, claramente para o lado da lagoa. Isa terá feito uma escolha? Ao olhar este magnifico quadro não posso deixar de me recordar do destino que os protagonistas dos livros “Morte em Veneza” e “Na Outra Margem entre as Árvores”, respectivamente de Thomas Mann e Ernest Hemingway, foram encontrar em Veneza: a morte.
Da terceira pintura diríamos seguramente tratar-se da coexistência dos dois tipos de quadros atrás descritos, na qual o abstracto mundo de autonomia pictórica se sobrepõe a um outro, figurativo, que revela um profundo e codificado universo interior. Mais do que simplesmente sobrepor-se, o abstracto vai ao encontro do figurativo – aqueles violentos arrastos de tinta, contrapondo-se em textura à velada superfície da representação de uma paisagem com árvores, faz eco das suas tonalidades. É como se o pintor passasse com uma espátula larga pelos restos de tinta da paleta que compôs a pintura figurativa e borrasse, literalmente, essa mesma pintura com os próprios restos que são também, no fundo, a matéria bruta de que é feita – o “Ceci n’est pas une pipe” de René Magrite contado de outra maneira?

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