2007/03/23

Imaginário do Artista - 4 - Defeitos e Virtudes do Conceito de Série (2.ª Parte)





























Claude Monet

Da esquerda para a direita e de cima para baixo, quatro quadros da mais extensa série “A Catedral de Rouen”:

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain na Aurora”, 1894
Óleo s/ tela
106x74cm
Boston, Museum of Fine Arts
The Tompkins Collection

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Sol Matinal”, 1894
Óleo s/ tela
91x63cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain em Pleno Sol. Harmonia azul”, 1894
Óleo s/ tela
107x73cm
Paris, Musée d’Orsay

“A Catedral de Rouen. A Fachada, Tempo Cinzento. Harmonia Cinzenta”,1894
Óleo s/ tela
100x65cm
Paris, Musée d’Orsay



Vimos no texto anterior que se tornou comummente aceite como arte o uso de um modus operandi sistemático e repetitivo sobre um determinado tema quando a obra se apresenta como conjunto sequencial de peças, como “série”. Torna-se por vezes difícil de discernir a honestidade da atitude serial, isto é, se esta irá, de facto, para além do artifício que tira partido da preguiça do espectador, fazendo-o aceitar um conjunto de objectos ocos mas semelhantes como notáveis obras de arte. A repetição que se apresenta como possibilidade até ao infinito (através de sucessivas variações) de exploração de uma mesma ideia, tema ou objecto, parece ofuscar o seu valor intrínseco, convencendo-nos de estarmos perante consistência e coerência artística mesmo quando ambas não estão presentes. A repetição e a insistência obstinada num mesmo método ou tema não torna o artista necessariamente coerente, porque em última instância a coerência apenas pode provir da verdade e esta do ser genuíno, nunca do charlatão. O artista coerente, ou melhor, o artista, é aquele que na sua inabalável posição de verdade e índole genuína transforma esse seu modo de ser em obras que, por esse motivo, são únicas e irrepetíveis. Tudo o resto está, a meu ver, fora da esfera da arte. O sucesso e excessivo entusiasmo por obras que se apresentam como série deve-se hoje, talvez, à facilidade de identificar, num repente, artistas através de uma imagem/reprodução observada nos meios de comunicação. Deste modo, artistas, obras e estilos organizam-se e catalogam-se logo no momento da sua génese, facilitando os meios de divulgação, publicidade e crítica. Método inegavelmente prático mas, ainda assim, trata aspectos que pouco deveriam importar ao artista.
Se recuarmos até às primeiras tentativas conscientes do uso da série em arte, veremos que nem sempre a ênfase foi entregue ao “como” e que, pelo contrário, a experimentação do “como” provinha do “o quê”. Nos vários quadros que compõem a série da Catedral de Rouen, Claude Monet repete de quadro para quadro a estrutura da composição, fazendo variar a atmosfera e o carácter da luz que sobre ela incide. Observa a fachada do mesmo local mas apresenta dela visões separadas no tempo, fixando-se nas notáveis características escultóricas do objecto. Do indagar à volta da complexidade visual que a ideia de escultura encerra em si mesma, do projectar dessa indagação na fachada da Catedral de Rouen, Monet fez emergir o “método” da série. Opta por representar a fachada parcialmente, ou seja, em nenhum momento pretende apreender ou decifrar do rendilhado de pedra os princípios da geometria latente do edifício. A comunhão que o artista efectua com o objecto que constitui a génese da sua proposta de arte é antes o fascínio pela qualidade da luz que o modela (como se revela a luz no objecto, como aparece o objecto por ela revelado). A transitoriedade da luz, a sua inconstância, escapa-lhe a cada momento. Ao apresentar a multiplicidade das “aparições” do objecto segundo o carácter da luz que o banha, o artista embrenha-se na impossibilidade de aprisionar a verdade da sua forma. A chave para ultrapassar essa impossibilidade descobriu-a Monet mais na invenção da luz, do que na impressão da luz, ao contrário do que poderíamos supor dado tratar-se o autor daquele que definiu artisticamente o género impressionista.

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