2007/03/13

Arte e Improvisação - Uma questão de Identidade


1.ª Parte
A improvisação é, desde sempre, usada em arte, podendo neste contexto subdividir-se em duas categorias básicas: na primeira, a improvisação constitui apenas uma ferramenta de pesquisa para formar a obra de arte, ferramenta através da qual o artista testa diferentes soluções no processo de decisão sobre a conformação final da obra (esboça, compara cores e texturas, ensaia acordes e linhas melódicas, testa timbres, trauteia, manuscreve ideias soltas, etc.); na segunda (aquela de que me vou ocupar fundamentalmente neste texto e que classificarei de “pura”), a improvisação constitui não apenas uma ferramenta de pesquisa mas também a obra de arte “em si”, porque o processo de decisão sobre os “acontecimentos” da obra é parte integrante da mesma. Pela sua natureza por vezes pouco reflectida, a improvisação deste segundo género cai eventualmente no lugar‑comum, dando origem a obras “fracas” que se comprazem na facilidade do efeito estilístico e que se tornam, desse modo, maneiristas. Por outro lado, quando “inspirada” e imbuída de espiritualidade extremada, a obra de arte improvisada é poderosíssima, arrebatadora, transcendental.
Os dicionários, quando se trata de definir o improviso no relacionamento que este tem com a arte, usam expressões um pouco vagas, tais como “é o discurso, poesia ou trecho musical proferido, feito ou executado sem preparação”. Sendo verdade que o possa ser, esta é, no entanto, uma definição não universal. Um improviso musical pode desenvolver-se “com preparação”, não deixando de ser improviso por esse motivo. O be-bop, que é talvez a expressão mais popular do jazz e este o género musical e forma de arte que mais associamos à improvisação, assenta em sequências de acordes e séries de compassos rigorosamente estabelecidos, movendo-se o discurso musical improvisado por lugares predefinidos, quantificáveis, imutáveis e expectáveis. Os improvisadores deste género de música possuem inclusivamente uma espécie de léxico musical que, no fundo, não é mais do que uma extensa colecção de clichés, “vocábulos” com o poder de tornar o discurso musical coerente, embora este, sendo improvisado, se vá tornando obra à medida que o músico o vai inventando em tempo real. Talvez nesta última expressão resida a chave para definir a improvisação como obra de arte: uma obra de arte improvisada é aquela que se forma em “tempo real”, ficando visível e/ou audível nela, ao constituir-se o seu corpo, a expressão directa de todos os “passos dados” pelo(s) artista(s). É portanto na forma como lida com o tempo que a obra de arte improvisada difere das restantes obras de arte. Se estas procuram vencer a morte pela perseguição da possibilidade do eterno (tentam ser conceptualmente perfeitas em si mesmas tentando, como tal, ir para além de si e do seu tempo de gestação), a criação improvisada, por ser “performativa”, parece aceitar erro e defeito, bem como o seu fim cronológico, fundando mesmo a sua estética no efémero, isto é, estabelece-se como processo criativo que respeita a sequência “nascimento – vida – morte”. Nas artes visuais “não‑performativas” (pintura, escultura e instalação) é, no entanto, oferecida ao improvisador a possibilidade de o processo criativo perdurar como forma estável no objecto fixo que constitui a obra de arte. Neste objecto, normalmente uma superfície ou outro qualquer suporte ou espaço onde seja possível actuar por incisões e/ou inscrições ou pelo simples posicionamento de objectos preexistentes ou elaborados para o efeito, é possível aos artistas deixar ler a sequência das acções que efectuaram em tempo real, embora o observador desfrute “num outro tempo” do objecto acabado, tempo esse que é já aquele que o observador disponibiliza para se relacionar com a obra. (Em Jackson Pollock, pressente-se o tempo real, que embora não seja quantificável para o observador da obra, está nela claramente implícito.) Estes artistas, para serem improvisadores puros, teriam de adoptar obrigatoriamente uma estratégia cumulativa ao criar a obra, ou seja, mesmo que a actuação sobre o “suporte” não fosse efectuada em contínuo, teoricamente não seria aceitável que fossem efectuados esboços ou estudos preparatórios fora dos constituintes visíveis da obra. Como pudemos constatar, na improvisação aplicada às artes visuais referidas é possível à obra resultante escapar ao carácter transitório do tempo da sua concepção, parecendo este ter ficado aprisionado no seu suporte. Este facto não se deve à natureza da improvisação, mas sim ao carácter estático destas artes. Este tipo de obra de arte não constitui por isso um instantâneo fotográfico, embora esteja imbuída de um espírito fotográfico (e não cinematográfico) que, operando em contínuo, regista e “congela” cumulativamente a sequência de acções do artista.
2.ª Parte
Apesar do que se afirmou atrás, o interesse que uma improvisação “pura” em arte na transição do séc. XX para o séc. XXI pode suscitar, difere indubitavelmente daquele que um público novecentista nutria pela expressão das emoções específicas de um determinado artista num preciso momento da sua vida. Embora a arte improvisada de que falamos resulte também de acções específicas do artista, bem localizadas no tempo e no espaço, o seu carácter nada tem a ver com o captar de atmosferas fugidias, como no impressionismo, ou com o arrebatamento sentimental, no romantismo. É arte que não é a representação de aspectos do mundo real, porque não procura traduzir artisticamente qualquer realidade preexistente; é antes torrente de energia que constrói ou transforma a realidade, ou seja, é o conjunto de acções que determinado artista, ou grupo de artistas, inventou em tempo real, que invadem nesse tempo ou num tempo posterior de dimensão intuída o nosso corpo e mente, alterando-os, originando pensamentos flutuantes, estados de espírito, esgares, transe, etc., factos que nos aproximam de uma espécie de primitivismo (primitivismo nos meios e não no estilo). Não se trata de uma arte que represente uma realidade espiritual, de objectos ou espaços, por semelhança ou dissemelhança, não é figurativa e, contudo, também não é abstracta. Na abstracção o que guia o artista é ainda a presença do símbolo, da narrativa e da psicologia aplicada às artes, seja no campo da cor, da composição ou de acordes específicos que os seres humanos associam a emoções específicas. Esta arte improvisada “pura” é uma arte “real”, teoricamente próxima da “estética real” a que se refere Robert Ryman no texto “Sobre a Pintura”, embora ao manifestar-se como objecto que é tão-somente ele-mesmo o faça longe dos paradigmas da “arte concreta” e dos minimalismos maneiristas e esquemas, a nosso ver, rígidos, viciados e há muito esgotados da chamada “arte conceptual”. É objecto cuja matéria que o constitui possui em si visíveis as marcas da “luta” que travou para existir. Este é o seu drama. A opção do artista pela improvisação “pura” advém seguramente de uma perene crise de identidade que, na sucessão cronológica das actualidades, parece ser um problema que no tempo presente é sempre mais acentuado do que anteriormente. Ao entregar-se ao improviso o artista parece extrair de si a sua idiossincrasia transformada em obra de arte. Contudo, não é lícito afirmar que a obra de arte resultante é uma representação da idiossincrasia do seu autor. Essa obra de arte é apenas uma associação de matéria que existe e tomou forma.
3.ª Parte
Ao por em evidência o imediatismo do gesto, o improvisador não está a negligenciar a estrutura da obra de arte dele resultante e esta não será menos “arquitectónica” por isso. Na arte actual, o gesto sobre a matéria em transformação, durante o intervalo de tempo em que a obra toma forma, é também, de certa forma, manifestação que nega as categorias de gosto impostas pelo marketing do meio artístico. É ainda a recusa da diluição da personalidade do artista na vasta panóplia de géneros e estilos impessoais e “internacionais”. É a afirmação implacável da sua individualidade, não pela via do maneirismo formal que nos habituamos a associar a um autor, mas antes pela evidência da incisão ou do moldar da matéria. Não é um “vale‑tudo” e, aliás, nunca o poderia ser, porque em plano de fundo a arte tem sempre presente uma ética que condiciona a estética e, por contraditória que esta afirmação possa parecer, é por este motivo que o artista sério não faz concessões aos gostos (aos gostos do público e aos do próprio artista). A sua acção procura ser construção de realidade que nega a realidade precedente, mudança que sugere a ideia de evolução na arte. Mesmo na obra de aparência tranquila pulsa a inquietação latente que é da natureza da arte.

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